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    Irmandade: Crítica da 1ª temporada

    A filosofia entre o certo e o errado.

    NOTA: 3,5/5,0

    O que define nossos conceitos de moralidade?

    Substancialmente, o certo e o errado representam dois opostos práticos que direcionam e adequam nossas ações de acordo com o julgamento daquilo que foi anteriormente classificado pelas leis e/ou pela sociedade como correto ou incorreto. Mas as coisas nunca são tão simples assim.

    Em Irmandade — recém-lançada produção brasileira com o selo de Original Netflix —, por exemplo, a advogada Cristina (Naruna Costa) acredita estar agindo da maneira certa ao cometer falsidade ideológica para salvar a vida de Edson (Seu Jorge), seu irmão encarcerado, enquanto o agente Andrade (Danilo Grangheia) possui plena convicção moral de que a vida do detento não vale absolutamente nada.

    O que une todas estas pessoas? Em determinados momentos da série, é possível ouvir os três personagens condutores da trama proferindo variações ambíguas do clássico ditado: "O certo é o certo, e o errado é o errado". Neste ponto, provavelmente já ficou um tanto claro que as noções morais e éticas de cada ser humano retratado na narrativa são completamente subjetivas, e, sem sombras de dúvidas, o maior mérito de Irmandade é fazer com que terminemos seu último episódio assim como começamos esta matéria: sem saber exatamente como responder a pergunta inicial. 

    Ambientado no Brasil da década de 90 e claramente inspirado em determinados acontecimentos reais, o seriado acompanha a trajetória de Cristina após ser obrigada a se infiltrar na polícia para desfazer a formação da facção criminosa intitulada "Irmandade", criada justamente por seu irmão. O primeiro ponto de atenção neste caso é como Cris, ainda quando era apenas uma criança, foi indiretamente responsável pelo efeito dominó que acabou culminando na formação do grupo. 

    Já nos primeiros episódios, é possível entender que a exploração conceitual do que se acredita ser certo ou errado será o principal plano de fundo dos acontecimentos. Em um mundo ideal, a polícia representa a lei, a justiça cumpre o papel de aplicá-la, e os condenados pelo conjunto das duas partes são punidos e posteriormente reabilitados para que possam novamente integrar a sociedade. Mas não é preciso estar em 1994 para saber que existe muito mais do que supõe nossa vã filosofia. 

    Netflix

    Com a descrição acima, seria normal assumir a ideia (errônea) de que Irmandade acaba caindo na velha problemática de "glamourizar" práticas criminosas em prol de estilismos e críticas tecidas de maneira superficial, mas o que vemos em tela, na verdade, é um resultado bastante cru de como o sistema não apenas é falho, como também reproduz exatamente aquilo que deveria evitar. Os agentes da lei não são justos e os condenados pela lei não se reabilitam. 

    É claro que, por contar com um protagonismo maior dos detentos, a série acaba sendo capaz de explorar melhor as motivações e dualidades deste núcleo, enquanto Andrade, por exemplo, não ganha tanto espaço para ser algo além de um policial caótico, insensível e violento que busca cumprir a lei com a condição de que isso aconteça da sua própria maneira contundente e questionável. No entanto, é justamente essa inversão de valores que faz com que Cristina comece a questionar todo o sistema no qual está inserida. O roteiro de Pedro Morelli realiza um bom trabalho em nunca deixar explícito o "lado" da advogada dentro de tantas reviravoltas, o que desperta também no espectador a bênção da eterna dúvida com todos os personagens.

    Edson decidiu criar a facção criminosa como afronte à violência e abuso de autoridade que sofreu, mas toma atitudes impensadas e sanguinárias mesmo com pessoas inocentes. Ivan (Lee Taylor) quer se distanciar do submundo que o levou à cadeia, mas não pensa duas vezes quando a Irmandade o ordena a assassinar seu melhor amigo. Cristina quer desfazer injustiças que ela mesmo cometeu, mas passa por cima da lei e manipula diversas pessoas até alcançar seu objetivo. Aqui, não existem vilões ou mocinhos, e sim pessoas que cometem atos terríveis como algo sintomático. 

    Mas nem tudo são flores nas escolhas de roteiro. Mesmo com todas as reflexões proporcionadas, a série passa seus quatro primeiro episódios desenvolvendo subtramas que não adicionam muito à história e poderiam ser facilmente resumidas em pouquíssimos minutos. Apesar da segunda parte da primeira temporada finalmente engajar em um suspense muito bem orquestrado, seu início é um pouco lento, o que pode desencorajar alguns espectadores. 

    O primeiro episódio, por exemplo, parece um pouco desconexo dentro do contexto geral da trama e, mesmo com tantas passagens feitas com o único intuito de localizar o público no tempo, ela acaba ficando cansativa muito rápido. Em resumo, alguns dos momentos cruciais e importantes para que os personagens se desenvolvam dentro da narrativa se resolvem muito rápida, enquanto tramas secundárias, como a da perseguição de De Paula (Marcos de Andrade) à Cristina, tomam um tempo desnecessário. 

    Netflix

    Mas se a condução começa devagar, as excelentes atuações de Naruna e Seu Jorge seguram a estrutura mesmo quando tudo parece prestes a desabar. A atriz, especialmente, é capaz de entregar uma personagem forte e determinada que, mesmo diante de tantas mudanças de percepção, não se rende ao arquétipo clichê de tornar-se uma às do crime do dia para a noite, e nem segue a linha "perdida e indefesa". Ela é forte o suficiente para questionar conceitos pré-concebidos, mas não exagera ao mudar drasticamente seus princípios iniciais. 

    Já Seu Jorge, por outro lado, segue a linha dura do início ao fim, rendendo-se ocasionalmente a curtos momentos de sadismo e sangue frio intercalados a outros de empatia e compaixão. Todos os outros secundários estão competentes em seus respectivos papeis, especialmente Pedro Wagner, que intepreta o atormentado Carniça, braço-direito de Edson fora da prisão.

    Os episódios da série seguem uma ordem crescente de qualidade, com direito a uma sacada especialmente bem colocada entre o clímax da temporada e a grande final da Copa do Mundo de 1994, protagonizada pelo Brasil. Enquanto as primeiras quatro horas da trama se concentram em desenvolver a complexidade das relações interpessoais e deixam a trama principal um pouco de lado, os últimos quatro capítulos seguem uma linha frenética muito bem-vinda, mas sem deixar de abordar questões importantíssimas de formas sutis e alusórias — muito disso se deve à presença de Aly Muritiba, diretor do excelente Ferrugem (2018), no comando das últimas três horas. 

    No final das contas, Irmandade deixa um gancho interessante para uma possível segunda temporada fornece uma visão contrastante daquilo que acreditamos socialmente estar certo e errado. Embora todos os personagens possuam suas próprias nuances e ambiguidades, outro ponto em comum entre todos eles é a barbárie que surge não apenas como sintoma a um problema muito maior, mas também como resposta a um sistema caótico que os oferece apenas o que existe de pior. Mesmo ambientada décadas no passado, Irmandade passa uma mensagem clara em nosso contexto atual: heróis e vilões se confundem dentro de um sistema historicamente problemático.

     

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