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    Lorena: Crítica da 1ª temporada

    Série documental de Jordan Peele é imperfeita, mas representa a necessidade de levantar a voz.

    Nota: 3,5/5,0

    Em 1993, todo mundo conhecia o nome de Lorena Bobbitt. A notícia sobre uma mulher que cortou o pênis do próprio marido se espalhou rapidamente. Mas se tem algo que o público aprende em Lorena é que sua verdadeira história nunca foi contada. Pelo menos, não da forma que deveria. E por um simples motivo: ela é uma mulher.

    Dividida em quatro capítulos já disponíveis da Amazon Prime Video, a série produzida por Jordan Peele (vencedor do Oscar por Corra!) tenta fazer aquilo que a mídia falhou durante os anos 90, a fim de entender as motivações de Lorena para atacar John Wayne Bobbitt. Afinal, não é surpreendente perceber como o crime se tornou alvo de tabloides mundiais (com um significado cultural bem mais forte nos Estados Unidos). O curioso mesmo é notar como essa narrativa foi contada de forma unilateral. Quando o caso vem à tona, todos lembram do membro decepado, mas poucos recordam como a moça foi agredida e estuprada pelo próprio marido.

    Se o ex-casal atraente era perfeito para estampar capas de jornais durante meses, a realidade de Lorena era incômoda demais para ser propagada da mesma maneira. A série causa impacto ao focar numa perturbadora realidade que, infelizmente, ainda parece muito próxima para observá-la como uma peça de época. O sexismo estava presente em todos os ângulos da equação. Se os homens ficavam arrepiados só de ouvir sobre o caso, as mulheres não precisavam de um júri para acreditar no relato da jovem.

    Da forma que o documentário passa, a cobertura da imprensa foi tão esmagadora que faz o Jake Gyllenhaal de O Abutre parecer amador. Lorena era perseguida por jornalistas e taxada de louca, enquanto organizações tentavam usar o caso para acender uma luz sobre a violência contra a mulher. Só que o debate não conseguia fugir de seu caráter sensacionalista, enquanto John Wayne se tornava uma espécie de subcelebridade, sendo aplaudido em programas de auditório e defendido por outros famosos. Inclusive, prepare-se para passar raiva diante das cenas recheadas com a falta de noção de uma sociedade movida pela masculinidade tóxica.

    Porém, o sexismo não é o único preconceito acentuado pela produção. A decisão do diretor Joshua Rofé de recontar o julgamento de Lorena em dois episódios se torna repetitiva, mas acerta ao trazer outros fatores do caso, como o estereótipo que ela sofreu por sua origem latina. Infelizmente, a narrativa passa a seguir um caminho forçado para contar a busca da jovem pelo "american dream", colocando os Estados Unidos como o grande sonho da protagonista, mesmo que essa mesma sociedade esteja ridicularizando cada aspecto de sua personalidade na opinião pública. O aspecto artificial da obra se torna ainda mais exagerado com o supérfluos usos de reconstituições dramáticos típicas de telefilmes, que não acrescentam nada para a história.

    Pelo menos, tal segmento ainda rende um dos momentos mais belos, ao revelar o forte apoio da comunidade hispânica para a equatoriana durante o julgamento. Infelizmente, tal arco passa rapidamente pela série de Jofe, que também não foi capaz de resistir totalmente ao aspecto sensacionalista do caso, usando-o como recurso "cômico" frequente (sabe aquele riso de nervoso?). Obviamente, a cobertura dos tabloides deve ter destaque na produção, mas trata-se de uma história tão cheia de camadas que fica até meio decepcionante ver outros temas serem ofuscados no resultado final. 

    Tendo dito isso, a decisão mais acertada de Jofe foi exibir trechos cruciais do testemunho de Lorena em seu julgamento. Sem cortes, sem trilha. Apenas as palavras de uma jovem trêmula. O incômodo dela atinge o espectador em cheio. Os relatos sobre como foi agredida e estuprada por John Wayne são dolorosos de assistir. Porém, muito necessários ao ilustrar a gravidade da situação em que se encontrava, e como culminou em um ato tão drástico. Depois de 25 anos, Lorena finalmente ganha sua voz, expressando tudo aquilo que ninguém quer debater: o estupro marital e a visão antiquada onde a mulher seria propriedade do homem. O caso Bobbitt não é algo particular que deveria ser resolvido entre quatro paredes. Representa um problema intrínseco na sociedade, mais frequente do que o senso comum é capaz de aceitar. A vergonha sempre recai sobre os ombros das vítimas, quando deveria estar com quem se recusa a falar sobre o assunto.

    Ao contrário do primeiro episódio, as entrevistas com os indivíduos relacionados com tal incidente começam a ser usadas de formas mais complexas — e não somente para aumentar o tempo de duração. As mulheres que lutam contra a violência trazem fatos históricos para basear esse debate; o promotor Paul Ebert surpreende mesmo com imparcialidade pedida por seu cargo; e o testemunho de Regina Keegan traz um olhar humano, dentre as artificialidades posicionadas pela equipe de reportagem ao conversar com Lorena e John Wayne.

    Mesmo com problemas, a produção de Peele brilha ao fazer uma comparação com os dias atuais e, consequentemente, um questionamento: Lorena se tornou um sussurro perdido numa multidão? Afinal, a sociedade paga de moderna, mas as vozes marginalizadas ainda são criticadas e/ou manipuladas quando tentam se levantar contra o sistema opressor. Temos o movimento #MeToo, mas quantos dos agressores realmente estão pagando por seus crimes? Porque um simples pedido de desculpas, escrito por algum assessor de imprensa, parece ser o mais longe que tal história pode alcançar?

    A própria série debate tal aspecto diante da figura de John Wayne. Até hoje (inclusive durante a produção da Amazon), ele nega qualquer tipo de agressão contra sua ex-esposa. Apesar de ter sido acusado mais vezes pelo mesmo crime, com outras parceiras, em diferentes épocas. Bobbitt fala como "existem mulheres que DEVEM ser vítimas, enquanto outras se aproveitam da lei que as protegem para culpar pessoas inocentes" — citando o mesmo sistema judiciário que só permitia investigar as agressões sofridas por Lorena até cinco dias antes do incidente, desconsiderando anos do relacionamento do casal.

    Joffe aponta as contradições de John, mas não o coloca como vilão da história. O episódio final apresenta uma reviravolta que explicita o ciclo do abuso presente na sociedade (e não é a toa que esse é o título do capítulo). Aprofundando a questão de maneira tangível, Lorena explica como o senso comum fugiu para superficial sobre a violência, buscando um debate ignorante para manter os mares calmos e audiência alta. E, o mais importante, ver como as consequências de tal silêncio dão continuidade para o problema.

    Fica claro como a mensagem de Lorena é maior que a série em si. Porém, reforça aquela que é a melhor resposta para o momento de luta: falar. Durante séculos, a voz da mulher foi calada. E ainda é. Mas isso não vai impedi-la de gritar até ser ouvida.

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