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    Boneca Russa: Crítica da 1ª temporada

    Parceria de Natasha Lyonne e Amy Poehler traz estilo e inteligência para Feitiço do Tempo.

    Nota: 4,0/5,0

    Todo mundo já conhece a fórmula de Feitiço do Tempo. Um personagem se encontra preso num loop do tempo, vivendo o mesmo dia diversas vezes, até aprender uma lição ou cumprir determinada tarefa. Desde o sucesso da clássica comédia de Bill Murray, o público viu essa ideia se repetir em outros filmes, como os recentes No Limite do Amanhã e A Morte Te Dá Parabéns. Já a TV usa tal artificio para quebrar rotinas, em alguns episódios, vide BuffySupernatural e The Vampire Diaries, por exemplo. Mas usar isso como premissa de uma série toda? De uma forma que não seja cansativa? Quem poderia conseguir isso? A resposta é o trio formado por Amy PoehlerNatasha Lyonne e Leslye Headland.

    Novidade no catálogo da Netflix, Boneca Russa gira ao redor de Nadia (Lyonne), mulher que poderia ser a definição de 'politicamente incorreto': egoísta, grossa, desbocada e tentando fugir de qualquer tipo de relacionamento sério com outros seres humanos. Na noite de seu aniversário de 36 anos, ela morre atropelada, mas acorda subitamente no banheiro de sua festa, horas antes do acidente. Logo, a ruiva fica presa nesse mesmo dia, sempre falecendo de uma forma trágica, enquanto tenta descobrir como sair dessa situação.

    A primeira vista, quem ouve tal sinopse, pensa que está diante de uma comédia simples, mas não é esse o resultado final. Se as criativas mortes e a inusitada investigação de Nadia conduzem os primeiros episódios de forma hilária, a história não perde tempo em inserir uma reviravolta em seu terceiro capítulo, quebrando o clichê imortalizado por Feitiço do Tempo. Apesar de ainda usar tal famosa fórmula como base, a narrativa encontra um jeito de manter o interesse do espectador, construindo sua própria mitologia numa curva, enquanto expande tal universo. Não dá para falar muito sobre tal transformação sem spoilers, mas acaba trazendo dinâmica para a série.

    A trama faz isso de uma maneira simples, focando apenas nas emoções de seus personagens para responder os mistérios. Não precisa criar malabarismos confusos como Westworld, nem ficar preso numa situação superficial estética como Black Mirror: Bandersnatch. O foco aqui é mostrar o desenvolvimento humano, obrigando Nadia a enfrentar seus maiores medos e traumas, pois essa é - literalmente - a única forma de se libertar da maldição. Encarar os problemas de frente dói, principalmente se você tentou ignorá-los por tanto tempo, como a protagonista. E as confusões da ruiva são uma analogia sobre a dificuldade de se permitir ser vulnerável. Algo necessário para observar melhor a realidade ao nosso redor. 

    Dentre tais situações inusitadas, surge uma metáfora sobre como o indivíduo se comporta em sociedade. A medida que cada reboot acontece, as coisas passam a mudar ou sumir, e Nadia começa a perceber como cada uma de suas atitudes afeta os outros — mesmo que ela siga focada apenas em seus próprios interesses. Sem contar spoilers, a reta final da trama deixa claro como a conexão com aqueles que amamos é essencial para nossa sobrevivência. O único defeito da narrativa é a insistência de criar problemas inesperados para os protagonistas na segunda metade da temporada. A situação que eles se encontram já é absurda, não precisava trazer mais complicações simplesmente por efeitos dramáticos. Porém, não é nada que atrapalhe o inteligente resultado apresentado nas telinhas.

    Se o símbolo da boneca russa pode ser considerado algo narcisista, pois ela é preenchida por mais versões de si mesma, aqui tal objeto também consegue outro significado: existem várias partes escondidas detntro daquilo que você permite que os outros vejam. E, para viver de forma plena, é preciso desbravar seus medos e seguir desconstruindo camadas, mesmo que você se sinta menos protegido a cada fase. Está tudo bem em ser vulnerável. Está tudo bem em se machucar. Está tudo bem em errar. Mas não dá para se isolar.

    É curioso perceber como uma mensagem tão emocional pode surgir de uma obra tão dedicada em sua técnica. Com um mundo caprichado, a trama apresenta tantos detalhes que podem até passar desapercebidos — se tornando uma daquelas séries que precisam ser vistas mais uma, duas, ou três vezes para aproveitá-la em sua totalidade.

    São as pessoas que mudam ao fundo da casa de Maxine (Greta Lee) na manhã pós-festa. É aquele ser que cruzou o caminho de Nadia, mas terá um papel essencial no futuro e você nem tinha reparado na sua existência. Um quadro com uma informação importante. O gato desaparecido. Até a quantidade de peixes em cada sala! Já outros momentos parecem seguir a mitologia Feitiço do Tempo, despertando a atenção da público esperando sua repetição, mas nem são reaproveitados em algum episódio seguinte. Seria proposital, justamente para quebrar a estrutura normal nesse tipo de história? 

    Tudo isso é cercado por ambientação específica de determinado grupo social em Nova Iorque, abraçando toda uma cultura local. Ao mesmo tempo, a cidade nem tem um papel essencial na história: são as pessoas que definem o conceito de lar. Se a direção de arte precisa ter um desempenho obsessivo para reconstruir a mesma situação diversas vezes, o trabalho de câmera usa alguns jogos interessantes para orientar o espectador nas reviravoltas da trama. Isso sem falar na trilha sonora, com destaque para "Gotta Get Up" — que ficará na sua cabeça por dias.

    Lyonne não esconde que parte de Russian Doll (no original) é inspirada em suas próprias experiências pessoais, já que passou por situações conturbadas ao longo da vida. Talvez por estar tão envolvida na narrativa (desde sua concepção), ela consegue apresentar uma das melhores performances de sua carreira. Mesmo cercada por um elenco coadjuvante competente, a atriz de Orange Is the New Black carrega a série nas costas. Com uma personagem singular, vai dominando a linha tênue de uma anti-heroína que não deseja ser exemplo para ninguém, mas entretêm ao soltar falas absurdas com tamanha vitalidade e diversão.

    Dentre o restante do elenco, fica destaque para Charlie Barnett, que consegue emocionar sem cair no estereótipo com a importante jornada de Alan; e para o papel de Elizabeth Ashley, trazendo um ar confortante dentre tantos personagens doidos. Ao mesmo tempo, deu vontade que a trama investisse mais tempo em Maxine e Lizzy (Rebecca Henderson), que formam uma química incrível com a protagonista. Por outro lado, vale muito a pena ressaltar como todos os oito episódios são dirigidos por mulheres, com Headland, Lyonne e Jamie Babbit (Nunca Fui Santa, Gilmore Girls) trabalhando de forma coesa.

    Provando que estética e roteiro podem caminhar lado a lado, Boneca Russa consegue quebrar paradigmas para transmitir uma mensagem emocionante sobre a vulnerabilidade humana e a necessidade de conexão. E tudo isso se beneficia por ser contada sem enrolações. São oito episódios, com menos de 30 minutos, cada. Simples. Rápido. Direto. Tem espaço para uma segunda temporada? Sim. Mas se for encerrada da maneira que foi, não dá para reclamar. Os seriadores presos em maratonas gigantes de episódios longos e desnecessários (que mais parecem filmes) agradecem. E muito!

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