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    Distopias, Mad Max e política: Um dia nos bastidores das filmagens de 3%, primeira série brasileira original da Netflix

    “Um cubo negro com projeções coloridas em neon”.

    Em 21 de abril de 2016, quando o AdoroCinema visitou o set de 3%, a primeira série original brasileira (sul-americana, na verdade) da toda poderosa Netflix, no Estúdio Quanta, zona Oeste de São Paulo, Dilma Rousseff ainda era a presidenta da República; Eduardo Cunha comandava a Câmara dos Deputados; o Brasil ainda se divida (divide?) entre “coxinhas” e “petralhas”; e “meritocracia” era um termos citado em 11 de cada dez comentários políticos no Facebook.

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    “A ideia começou, na verdade, lá em 2009. Eu tinha exatamente 20 anos, que é a idade dos protagonistas. Ainda não tinha chegado no Brasil a onda das ‘distopias’. Eu nem sabia que existia Jogos Vorazes”, se antecipa Pedro Aguilera, o criador da série. “Esse conceito, mais tarde, de meritocracia, foi ganhando mais maturidade e eu fui entendo mais”, completa o rapaz, hoje com 28 anos – mas com carinha de 20.

    “A série fala de uma sociedade onde, por mérito, você consegue as coisas. Se você não for bom o suficiente, acabou a vida para você”, explica a atriz Bianca Comparato, talvez o nome mais conhecido do elenco. “Mas tenta ser um alerta, como esses filmes todos que falam de ecologia, de catástrofes que podem vir acontecer, e é uma catástrofe econômica, política mesmo”, ela vai além, entre uma garfada e outra na pausa para o almoço.

    O indicado ao Oscar (pela fotografia de Cidade de Deus) César Charlone, que assume como diretor geral da obra, confirma que o roteiro não foi seguido à risca, com alterações sendo feitas enquanto se rodavam as cenas. Mas, como “showrunner de uma ideia alheia”, admite que o calor dos acontecimentos políticos externos foram incorporados como “pinceladas”. “Também para que não ficasse datado. Tem referências, claro, no momento em que se questiona a corrupção, que começam a surgir os ‘dois lados’, mas não entramos [no mérito]”. E provoca, sempre com bom humor: “Tem um Cunha, sim, mas é um Cunha...”

    Todos no mesmo quadrado.

    Horas antes de atender à imprensa, Bianca (que interpreta Michele), Michel Gomes (Fernando), Rodolfo Valente (Rafael), Rafael Lozano (Marco) e Vaneza Oliveira (Joana), se digladiavam dentro de um cubo negro com projeções coloridas em neon nas paredes – esse que aparece no minuto 1’49 do trailer, abaixo – repetidas vezes. Uma cena aparentemente simples, mas refilmada à exaustão.

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    Eles são os participantes do Processo, “prova” por qual passa todo jovem ao completar 20 anos, para decidir se continua no ambiente miserável do Continente, ou se ascende para o Mar Alto, local onde, pelo menos em princípio, “Teus risonhos, lindos campos têm mais flores/ Nossos bosques têm mais vida/ Nossa vida no teu seio mais amores”. Só os 3% do título, claro, passam para o lado iluminado da força.

    “Inicialmente, quando o Pedro criou a série, ela era baseada em uma coisa meio vestibular. Ele queria falar do vestibular sem falar diretamente do vestibular. Acho que a gente amadureceu muito isso. Tem essa angústia, do jovem, mas eu acho que é uma coisa mais política envolvida”, insiste a atriz, que foi convidada (nada de “processo”, ufa!) para o projeto.

    Pedro confirma: “Todo mundo passa por mil processos. [No início] A gente estava mais focado na ansiedade de como seria o mercado de trabalho, na experiência do vestibular”, diz ele, que demorou para tirar a carteira (ou carta) de motorista – processinho complicado, diga-se. “Então, acho que tem muito a ver com a nossa visão política do que é a nossa sociedade. Não necessariamente as loucuras agora de 2016”, (des)atualiza.

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    Do YouTube para a Netflix.

    Na migração da internet (leia YouTube) para a TV (Netflix), a websérie perdeu o tom policialesco e ganhou cores, romance e humor (tem até uma playlist no perfil oficial da série no site). “O que mais mudou foi a gente ter mais clareza da história que a gente queria contar. A angústia do jovem está lá. A forma como processo acontece é que está mais sofisticada”, garante Pedro, autor do roteiro de Copa de Elite e colaborador do texto de Homens são de Marte... E É pra lá que Eu Vou ("ao lado de Herson Capri", ele se diverte).

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    “Fizemos uma campanha de marketing de guerrilha na época e os fãs foram generosos com a gente, porque eles legendaram. E isso foi meio que maravilhoso. Se eles não tivessem legendado, os caras da Netflix não teriam assistido”, comemora o fã de The Wire.

    “A gente não está bem com o cinema brasileiro. Então, as séries, essa ‘lei das séries’ [Lei nº 12.485, ou ‘Lei da TV Paga’, que obriga os canais de TV a exibirem conteúdo nacional], deu um fôlego muito legal para o mercado”, acredita Charlone. O uruguaio, diretor de O Banheiro do Papa e da série Destinos, acredita que a forma de consumir audiovisual também mudou com o tempo. “Parece um livro. Você vai até a página 40 e fecha, aí continua amanhã da página 40, de novo, ? É diferente”, afirma o orgulhoso dono de um iPad.

    Jogos Vorazes, Black Mirror e Mad Max.

    Reprodução Facebook

    César admite, no entanto, que essa é uma temática que jamais partiria dele. “Eles falam de Hunger Games e tal, minha filha que me conta. Eu acho que eu posso ter trazido um outro lado, porque dá um equilíbrio bem bacana, a juventude e o frescor, deles, com uma visão minha, de querer aprofundar algumas coisinhas”.

    “Tem um pouco [de Jogos Vorazes], mas bem pouco, na nossa série. Eu fiz uma pesquisa, com os [filmes] Divergente, que eu não tinha visto, e fiquei muito feliz de ver a quantidade de ator bom que está participando destes filmes. Até o Philip Seymour Hoffman. A gente pode até ter um certo preconceito. Mas eu acho todos esses filmes muito bons. Eles se propõem a ser entretenimento, que fala com um grande público”, defende Comparato – que ainda cita Black Mirror (“Tem essa coisa que você vê que está mais para frente, mas, nas primeiras cenas, às vezes, não entende onde está no tempo”) e Mad Max como referências. Mad Max?! “É luta por comida, água, escassez de tudo, sabe?”

    Tinha que ser no Brasil.

    A comparação técnica com as produções do gênero, de Hollywood, por outro lado, é algo impensável na visão do realizador. “A gente nunca vai poder competir com um produto desses, por planejamento, por experiência, por sei lá o quê. A nossa riqueza é a brasilidade”. “Mas uma coisa que me frustra muito, cada vez que eu volto para o Brasil, é um clássico: A escada rolante não está funcionando, como não funciona aqui, em Quito ou Nova York, mas o cara fala ‘tinha que ser no Brasil’”.

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    E por que 3% “tinha que ser no Brasil”? “A gente tem uma mistura de elenco de vários estados. Não nos preocupamos com sotaque, em neutralizar nada. Mas o que eu mais sinto de mais brasileiro é essa discrepância econômica. Para mim, isso é a série. Todos estão ali batalhando. Mas o mundo, o que a gente chama de “lado de cá” ou Continente, é o Brasil. A gente exagera, romanceia um pouco, mas no fundo é o que é: pobreza”.

    “As revoluções não se anunciam, elas acontecem”.

    O cinema documentário, tão caro à carreira de Charlone, parece uma inspiração mais realista. Em que sentido? “A gente dificilmente repete o mesmo plano. E você nunca gosta da interpretação do ator o tempo inteiro. Então, eu prefiro repetir de um outro ângulo, porque o montador vai garimpar aquele momento bom. Isso é muito documental”.

    Empolgado, César atesta que “A gente está tentando fazer uma coisa diferente”. “Eu tenho uma certa idade [58 anos], então, filmar é meio sacrificado. São 12 horas, muito tempo em pé. Quando você está já na 25ª viagem, o despertador toca às 5h da manhã, você precisa ter uma razão muito boa para levantar. Se é para pagar as contas, eu posso fazer comercial”. E conclui: “Eu acho que as revoluções não se anunciam, elas acontecem”.

    Com João Miguel (Estômago) – “que é meio o Pedro Bial da parada”, brinca Bianca –, 3% estreia em 25 de novembro, com oito episódios, no Brasil. Em Hollywood. E no mundo.

    O AdoroCinema viajou a São Paulo a convite da Netflix.

     

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