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    Luke Cage: Crítica da primeira temporada

    O relutante herói à prova de balas mostra a importância de se entregar o protagonismo da narrativa, mas não sem alguns problemas.

    Quando Jessica Jones debutou nas telas da Netflix com sua garrafa de uísque do lado e atirando homens pela porta da Codinome Investigações, ela também inaugurou nas séries de super-heróis uma nova abordagem. Pela primeira vez, ao menos neste novo Universo Cinematográfico Marvel, abandonou-se os uniformes de malha, as capas e as "fantasias" e a protagonista apresentou dramas – e traumas – que, embora através de metáforas, soaram reais. Com Luke Cage, o universo dos Defensores dá um passo a mais neste caminho mais realista. O que possibilita à série ganhar uma relevância tão grande e indestrutível quanto seu protagonista.

    Distante de Hell's Kitchen após ter conhecido Jones (Krysten Ritter), tudo o que Luke Cage (Mike Colter) quer é passar despercebido. A série é situada temporalmente alguns meses após o fim da primeira temporada de JJ, enquanto o protagonista leva uma vida rotineira, sem muitas emoções mas rodeado dos mais variados tipos.

    A trama dessa vez se passa no Harlem. O histórico bairro de Nova York é um forte centro cultural e comercial da comunidade negra. Por lá passaram personalidades, escritores, músicos e ativistas sociais que vão de Malcolm X a Louis Armstrong e Zora Neale Hurston. E é ancorada nesta importância social de onde está inserida que Luke Cage se permite abordar assuntos que conversam diretamente com a realidade local e transborda de maneira universal.

    O grande trunfo de Luke Cage reside no fato de ela reconhecer a própria importância. Destacada da ainda inédita reunião dos quatro Defensores, a produção brilha dentro e fora das telas por entregar o protagonismo aos protagonistas. Cheo Hodari Coker, showrunner e roteirista, traz com precisão para a trama do herói discussões extremamente atuais, havendo denúncia da corrupção policial em uma irrigada teia de favores entre detentores do poder; Perseguição e atos de violência gratuitos cometidos contra a comunidade negra; Jovens que são submetidos desde a infância a um sistema cruel que os deixa à margem das oportunidades. Num ano em que um caso novo de violência da força policial contra negros surge na mídia todos os dias, a ficção assume com muita nobreza uma voz e uma posição ao defender e contar a origem de seu herói não do ponto de vista de uma vítima, e sim de um ator da própria realidade.

    Cortesia da Netflix

    Em se tratando de heroísmo, a trama de Luke Cage mergulha em uma abordagem menos fantasiosa do conceito, talvez a mais realista até então. O protagonista segue rejeitando o título, mas seus vilões também são mais fincados na realidade que os apresentados em Demolidor ou em Jessica Jones. O grande vilão é o mais universal e onipresente que existe: O sistema político corrupto, alimentado por velhos favores e pela influência das altas quantias de dinheiro. Através das figuras de Mariah Dillard (Alfree Woodard), Cornell "Boca de Algodão" Stokes (Mahershala Ali), Shades (Theo Rossi) e companhia, a série denuncia um sistema interminável que raramente diferencia os violentados dos violentadores.

    Mike Colter encontra aqui o espaço ideal para desenvolver o personagem por completo. O ator entrega um personagem que é sentimental e extremamente nobre, mas ao mesmo tempo guarda dentro de si uma raiva muito forte que deixa transparecer quando aqueles ao seu redor são alvo de algum inimigo. A indestrutibilidade da sua pele tem um contraste muito significativo com o quanto ele é sensível e carismático. A mesma leveza e sensibilidade está presente na construção da persoangem de Simone Missick, a Misty Knight. Aqui, a série distorce os estereótipos do "angry black man" e da "angry black woman", mostrando sua perfeita capacidade de desenvolver personagens complexos e densos sem precisar apelar para recursos cansativos e repetitivos.

    Através das dores e das lutas de um único homem, que sobreviveu ao encarceramento injusto passando por humilhações e foi transformado em algo novo contra a própria vontade, Luke Cage traduz para o universo ficcional dos super-heróis lutas que são parte da vida real de uma grande parcela da comunidade. A grande sacada da história é transformar a vulnerabilidade do protagonista, por estar constantemente exposto a um estereótipo de um homem negro condenado à prisão, no elemento primo de suas habilidades. Existe uma mensagem extremamente poderosa por trás do conceito de um protagonista negro à prova de balas e destemido, que se torna o alvo de perseguição tanto da polícia quanto dos bandidos apesar de suas ações serem benéficas. 

    Myles Aronowitz/Netflix

    A série ganha muito na apresentação do protagonista e na ambientação do Harlem. O personagem Pop (Frankie Faison) é uma síntese bastante rica de uma história de vida que parece à primeira vista ser extremamente local, mas suas explicações – sucintas e memoráveis – da realidade ao qual está submetido um jovem negro de classe baixa, com poucas oportunidades, é o primeiro grande indício de que a realidade difícil e injusta é universal. Mesmo assim, Luke Cage não está imune de problemas, e apresenta uma narrativa por vezes desnecessariamente lenta na primeira metade da temporada. A narrativa é envolvente e significativa, mas não tão forte quanto a parte seguinte da história, quando há menos foco nos vilões e mais na dinâmica incrível entre Rosario Dawson, a Claire Temple, e Colter.

    Não é necessário ter assistido a Jessica Jones ou a Demolidor para entender e se envolver com a história de Luke Cage. Há algumas breves menções às duas séries, mas nada que faça diferença para aqueles que não tenham acompanhado as produções anteriores. O mais significativo é que, aqui, Claire Temple tem muito mais presença e importância do que nas séries anteriores – algo que, aliás, faz bastante sentido visto as origens na personagem na HQ. Os personagens funcionam muito bem juntos, e a trama ganha muita força pelo quanto eles se desafiam. Outro ponto de força é a dinâmica entre Claire e Misty Knight, que apresenta um incrível potencial para ser desenvolvida com mais tempo no futuro.

    Menor, mas potente e marcante, é a participação de Sonia Braga. A brasileira interpreta Soledad, mãe de Claire, e suas aparições são curtas mas importantes para criar um ponto fixo na trama. E em um certo momento, é possível até acreditar que ela seria capaz de matar Luke Cage se quiser. Só com o olhar. 

    Cortesia da Netflix

    Com todos os seus triunfos e alguns problemas, Luke Cage conseguiu resolver com bastante destreza o empecilho de como abordar a origem do personagem, com flashbacks, sem ser previsível ou enfadonha. Pelo contrário, os momentos em que a série volta para Cage aprisionado e ganhando as suas habilidades traçam uma relação direta com o tempo atual da trama, e portanto não cai na pegadinha de ser uma explicação meramente convencional e obrigatória.

    Se há um elemento da série que dificulte a narrativa e atrapalhe o ritmo é a tendência, talvez, de passar tempo demais no clube de dança acompanhando o grupo dos vilões. Não por falta de carisma dos personagens; Boca de Algodão é imprevisível e cativante, e Mariah Dillard é uma potente vilã interpretada com muita força por Woodard, mas mesmo assim falta algum tipo de brilho nestas cenas. Quando a série decide investir sua dedicação às batalhas internas e externas de Luke Cage, é que o texto mostra a sua atualidade. Atos de uma silenciosa e significativa resistência mostram o apoio popular a um relutante herói eventualmente vilanizado; A truculência policial contra a população negra mostra sem medo o erro cometido pelos oficiais, estes ora também pressionados por exigências e forças além de seu controle; Um cara à prova de balas se esconde pelas ruas vestindo um moletom esburacado, enquanto tenta se decidir se o melhor é continuar passando despercebido ou assumir que cabe a ele instigar uma mudança. Sem se forçar a ser uma declaração político-social, é exatamente isso que a série é. Não por obrigatoriedade, mas por entender quem são os personagens que estão em cena. E que a maior parte deles – se você esquecer o detalhe de o protagonista ter uma pele impenetrável – de fato existe e está por aí todos os dias. 

    Versos de um rap composto em homenagem a Luke Cage anunciam que não dá para entender um homem se você não vive a vida dele. Corretamente, partindo deste exato princípio, a história mergulha fundo nos questionamentos deste mesmo homem para apresentar a crônica de tantas vidas comuns, elevadas à máxima potência. 

    Numa realidade com tantos heróis que voam por aí usando trajes de malha ou armaduras de metal, um cara negro do Harlem vestindo um capuz é o mais potente dos heróis. Despido de ideais de uma narrativa fantasiosa, Luke Cage é a história de super-herói menos "de super-herói" já feita até agora. E sem sombra de dúvidas – ou talvez exatamente por isso – a mais importante delas.

    Não dá mesmo para entender a vida de um homem sem levar a vida dele. Mas Luke Cage, ao levar o público para dentro da cabeça e dos traumas do seu protagonista, faz com que a gente pelo menos tente.

    PS: Há um easter-egg no fim do último episódio que já sugere como Claire Temple vai estar na história do Punho de Ferro. Será que lá alguém finalmente vai aceitar que ela chame aquele advogado muito bom que ela conhece?

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