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    Crítica da primeira temporada de The Night Of

    Minissérie da HBO expões as engrenagens da indústria penal numa grande reflexão sobre a Justiça e injustiças. Numa grande obra.

    James Gandolfini foi a cara e a alma de uma verdadeira revolução na televisão norte-americana, como o chefe da Família Soprano. Três anos após sua morte prematura, em nova parceria com a HBO, seu legado é surpreendentemente enriquecido com mais uma grande (minis)série: The Night Of, da qual seria protagonista e, de maneira póstuma, assina como produtor executivo de uma obra grandiosa, que tão bem trabalha um gênero, dois, três, e diversas questões sociais pelo caminho.

    The Night Of começa de forma espetacular! Nasir Khan (Riz Ahmed, excelente) é um jovem de família muçulmana que, para curtir uma noitada com os amigos, pega, escondido, o táxi do pai. No início de uma sucessão de erros, uma estranha entra no táxi. Uma linda estranha. E tão estranha à sua realidade introvertida e conservadora que aceita mudar os seus planos para uma noite inesquecível, regada a bebidas, drogas, jogos violentos, sexo selvagem... assassinato. Naz acorda, Andrea (Sofia Black-D'Elia), não. As 22 facadas sobre a misteriosa de 22 anos recaem sobre Nasir, que tenta fugir — em vão. Formando mais provas contra si e se tornando o único suspeito por um crime que não cometeu.

    Esse piloto é brilhante. Uma obra de suspense que constrói tensão em todos os aspectos do fazer cinematográfico. Uma Nova York em sombras envolve o roteiro redondo, o protagonista assustado, o espectador, sufocado. Dali em diante, o thriller atmosférico se transformará num drama que investiga em minúcias um processo criminal, da descoberta do assassinato ao passo a passo a que é submetido o réu. O espectador segue toda a peregrinação de Naz: da cadeia para o tribunal, dali para a penitenciária, vivendo um inferno! À deriva e à mercê de uma indústria penal assustadora, formada por burocratas que ignoram as vidas perdidas num assassinato ou numa penitenciária.

    A polícia não busca o culpado; a polícia busca um culpado. Sem se aprofundar nas investigações, entrega Naz de bandeja a uma promotoria em busca de resultados, que usará até de chantagem para ter o depoimento que deseja de suas testemunhas. Os juízes querem apenas acelerar o processo, partir desse a outro julgamento. Defensor do réu, John Stone (John Turturro) é um advogado de porta de cadeia parabenizado pelos juízes, promotores e policiais por conseguir um caso de homicídio — o mais rentável, mesmo que seu trabalho seja apenas conseguir o melhor acordo possível. Como se fosse bom confessar um crime que não cometeu e aceitar uma prisão de apenas 15 anos.

    Desse modo, The Night Of escancara a falácia do contraditório e da ampla defesa nos Estados Unidos — e no Brasil, e no mundo como um todo. Um direito constitucional que só é de fato garantido a quem tem dinheiro; muito dinheiro. Quando a minissérie se transforma numa legítima obra sobre cadeia (fortes ecos de Oz), vemos que os presidiários são predominantemente minorias (negros, hispânicos, muçulmanos). Inteligentemente, os criadores Richard Price e Steven Zaillian ainda manipulam nossos próprios preconceitos: os primeiros suspeitos da morte de Andrea são pretos, mal encarados, entregues de bandeja a um julgamento precipitado e injusto do espectador. Do meio pro fim da série, surgirão pessoas com reais motivos de assassinar Andrea. Todas brancas. Só dignas de suspeita depois de muita investigação — como todos deveriam ser.

    The Night Of articula seus temas com tanta habilidade que dramas locais, como a paranoia pós-11 de setembro, é abordada com a universalidade da discriminação racial. Em tempos de discussão sobre maioridade penal no Brasil, por exemplo, as transformações física e psicológica de Naz para sobreviver na cadeia surgem como ótima reflexão sobre a gravidade de uma prisão. No âmbito dos personagens principais, aliás, a sensibilidade dá o tom.

    Depois de ser apresentado como triste caricatura, sem escrúpulos, John Stone ganha dimensão. O advogado pé de chinelo, mal vestido, é justamente o mais compassivo — o que talvez justifique seu fracasso apesar de tão experiente e, sim, talentoso. A metáfora com o gato (de que ele sente pena, acolhe em casa e paga o preço disso com o agravamento de sua alergia) reflete a delicadeza de um verdadeiro estudo de personagem. E o fato de ser esse o papel originalmente atribuído a James Gandolfini.

    No final, The Night Of vira um filme de tribunal. Um bom filme de tribunal, que, mesmo diante de uma resolução otimista (as pessoas que formam o sistema podem, se quiserem, reverter uma situação de injustiça), não se rende à pura catarse e conveniência de dar tudo que o espectador espera. Num epílogo essencial, vemos um Naz rancoroso, traumatizado, viciado; resultado de uma condenação que será eterna. A mensagem é direta às autoridades, que lidem com o peso dessa responsabilidade com o devido cuidado.

    Cabe o cuidado com que foi concebida The Night Of.

    Nota: 4,5/5

     

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