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    Marielle: Documentário assume tom jornalístico e remonta assassinato sem ignorar a relevância social (Primeiras Impressões)

    A primeira e a última vez.

    Marielle Franco era uma pessoa. Uma mulher negra, periférica, que saiu da pobreza e conseguiu tornar-se vereadora no Rio de Janeiro para a Legislatura 2017/2020 durante as eleições municipais de 2016. Por outro lado, Marielle possuía ideais, lutas, convicções e posicionamentos — e foi silenciada por isso. Em sua mais recente série documental, lançada em TV aberta nesta quinta-feira (12) e continuada diretamente no Globoplay, a intenção não é alcançar didatismo ou tentar resolver o assassinato. Muito pelo contrário.

    O que chama atenção já nos primeiros minutos de Marielle - O Documentário é a forma como a equipe de Jornalismo Globo, sob direção de Caio Cavechini, um dos principais documentaristas e jornalistas da emissora, consegue encontrar maneiras diferentes de não acabarem caindo em algumas das estratégias tradicionais de se fazer uma obra documental.

    Para isso, usa-se o interessante recurso de retratar em tela as principais conversas no Whatsapp da vereadora e de seu motorista, Anderson, intercaladas aos depoimentos dados pelos familiares. A abertura do primeiro episódio, por exemplo, mostra o diálogo entre Anderson e sua esposa através de um áudio enviado por ele apenas alguns minutos antes de sua morte. 

    Claramente separados em atos, os primeiros episódios do documentário acabam dando um tom às vezes melancólico, com longos planos tendo como fundo musical notas de acordeón e violino. A melancolia, no entanto, não chega a ser um problema, visto que os entrevistadores mostram uma experiência e um jogo de cintura completamente diferenciais para a confortabilidade de entrevistados como os pais, a viúva e a ex-assessora de Marielle. 

    Em uma cena, por exemplo, a tristeza da mãe de Marielle rapidamente dá lugar à divertida interação dela com o marido. No trecho em questão, ela ordena para que ele ponha uma camisa mais "apresentável" pois está prestes a aparecer na TV. Em uma edição competente, que lembra bastante a narrativa do Profissão Repórter — porém com tom mais sóbrio —, também dirigida por Cavechini, os momentos naturais aparecem como um ótimo respiro em meio ao caso. 

    Deixando claro desde o início que não agiria como uma espécie de documentário investigativo, a série busca muito mais mostrar desde os pequenos detalhes da investigação até as maiores polêmicas de novo. Os dois primeiros episódios são dedicados a falar sobre a adolescência e o início da fase adulta de Marielle, narrando seu início como líder política e sua ascensão em um cenário periférico, também usando algumas imagens de arquivo de seu primeiro comercial gravado para a TV. 

    Embora em um primeiro momento seja difícil entender a intenção primária da série, tudo vai ficando claro conforme os episódios vão passando: a vida de Marielle já é suficiente para explicar por que o seu assassinato ainda não solucionada fala tanto a respeito do Brasil. Seguindo as lições de Eduardo Coutinho, um bom documentário é aquele que passa sua mensagem sem nunca precisar dizê-la. 

    Mais real do que qualquer ficção, porém mais cheia de reviravoltas do que qualquer novela, o Caso Marielle não tem a mesma importância se não soubermos a respeito da sua vida. E sua vida não tem o mesmo significado se não entendermos como ela tão abruptamente terminou. Justamente por isso, os episódios iniciais possuem tanta serventia para construir o inesperado fôlego que a série ganha quando a repercussão do caso começa a ser debatida.

    Por mais que nem sempre faça um equilíbrio tão bem medido entre o documental e o cinematográfico, Marielle - O Documentário cumpre bem o seu papel em falar sobre o atual cenário sociopolítico brasileiro e sobre as lutas de uma mulher negra, periférica, LGBTQ+ e independente para conquistar um espaço tão importante. E posteriormente acabar sendo silenciada por tocar nas feridas que incomodavam pessoas poderosas. 

    Termino falando de uma das cenas mais emblemáticas do documentário, que acontece justamente no primeiro episódio, onde Marielle aparece discursando em um plenário lotado de homens engravatados, sofre deles diversos protestos e ataques, e os responde usando a melhor arma que possuía em mãos naquele momento: o processo democrático que a fez chegar até ali. Naquele dia 8 de março de 2018, este seria seu último discurso feito na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. E em suas últimas palavras proferidas ali, ela, sem querer, foi capaz de resumir o documentário com apenas um pronunciamento, feito em meio a tantas vaias de políticos que não aceitavam sua posição de poder: 

    "Não serei interrompida, não aturo o interrompimento dos vereadores desta casa. Não aturarei de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita presidente da Comissão da Mulher nesta casa. Sabemos que, infelizmente, estes casos não serão a última e nem a primeira vez". 

    Menos de uma semana após o pronunciamento, Marielle foi assassinada com dois tiros na cabeça e um no pescoço, em um caso até hoje não solucionado. Não foi a última e nem a primeira vez.

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