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    Cine Ceará 2019: A vida invisível da política audiovisual brasileira

    Fernanda Montenegro, Karim Aïnouz, Fernando Haddad, "Lula Livre".

    Chico Gadelha / Divulgação

    A cerimônia de abertura do 29º Cine Ceará - Festival de Ibero-Americana de Cinema trouxe uma série de surpresas às centenas de pessoas que lotaram o Cine São Luiz, em Fortaleza, na noite de 30 de agosto.

    Ao invés de discursos protocolares de agradecimento, o evento trouxe palavras fortes e apaixonadas sobre a política audiovisual brasileira, com direito a críticas diretas ao atual governo no que diz respeito à gestão da cultura e das artes - especialmente no dia em que Christian de Castro e outros membros da ANCINE foram afastados após o plano de desmonte das leis de fomento e de regulação de projetos de cinema.

    A plateia trazia duas personalidades importantes da atual política brasileira: Ciro Gomes (PDT), ex-governador do Ceará, e Fernando Haddad (PT), que foi ovacionado em diversas ocasiões ao longo da noite. Quando fez o sinal do "L" com a mão, em referência ao ex-presidente Lula, Haddad despertou coros de "Lula Livre" e "Meu presidente" dentro da sala de cinema. Haddad e Ciro trocaram cumprimentos diante de dezenas de fotógrafos, enquanto pregavam a união entre opositores ao atual presidente.

    Rogério Resende / Divulgação

    Além deles, Fabiano Piúba, secretário da cultura do Ceará, leu um extenso discurso em afronta ao governo atual. "Enquanto alguns elegem a cultura, a arte e a educação como inimigas, [devemos enxergar a cultura como] civilidade e solidariedade, sobretudo nos dias de hoje". Ele conclui: "Devemos com toda a nossa garra e inteligência defender a ANCINE como patrimônio do cinema brasileiro".

    Posicionando-se também como opositor às políticas federais, o governador Camilo Santana (PT) parabenizou os artistas cearenses pelas conquistas de dois grandes prêmios de cinema recentes: a vitória de A Vida Invisível, dirigido pelo cearense Karim Aïnouz, na mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes, e a vitória do cearense Pacarrete, de Allan Deberton, no Festival de Gramado. "Um país só cresce se investir em cultura e educação", ressaltou, antes de prometer dobrar os recursos para o audiovisual no Estado.

    Além disso, alunos de universidades cearenses como UFC e Unifor ocuparam o cinema com faixas e cartazes clamando "Fora interventor e o ministro ditador", que "não elegemos e não reconhecemos". As palavras de ordem foram ecoadas por Karim Aïnouz, grande homenageado da noite, sob aplausos efusivos da plateia.

    Rogério Resende / Divulgação

    Quanto ao próprio Cine Ceará, a diretora geral de programação, Margarita Hernandez, comemorou o número recorde de 1.231 filmes inscritos na edição 2019, e da instauração de uma cota de 30% para obras de diretoras mulheres, no intuito de reforçar a visibilidade da autoria feminina e estimular novas produções feitas por mulheres.

    Apesar da presença numérica majoritária dos homens no palco, a noite se voltou, afinal, às mulheres. Karim Aïnouz dedicou a exibição de A Vida Invisível, nosso representante na corrida ao Oscar 2020, à mãe feminista e a "todas as mulheres que são constantemente apagadas de suas vidas". Antes da exibição de seu melodrama feminino, ninguém recebeu tantos aplausos quanto Fernanda Montenegro, que elogiou a generosidade do diretor em convidá-la para o projeto, enquanto demonstrava otimismo na possibilidade de mudanças: "O Brasil vai dar certo!", exclamou.

    O público ficou de pé para ver a atriz evocar suas quase sete décadas de trabalho nos palcos antes de entregar o troféu de homenagem a Aïnouz, lembrado nas telas do São Luiz por uma colagem de seus filmes, incluindo Madame SatãO Céu de Suely e O Abismo Prateado. A ternura no tratamento entre atriz e diretor gerou alguns dos instantes mais calorosos da noite, quando um mar de celulares em punho buscavam registrar a cena.

    Rogério Resende / Divulgação

    A noite se encerrou com a sessão catártica de A Vida Invisível, em sua primeira exibição oficial no Brasil. O público se emocionou muito com a tragédia de duas irmãs, Eurídice (Carol Duarte na juventude, Fernanda Montenegro na velhice) e Guida (Julia Stockler) que se separam devido a infortúnios amorosos e familiares, e passam o resto da vida procurando uma à outra. O drama explicita como as convenções retrógradas do Brasil dos anos 1950 impedem que as duas mulheres tenham vidas livres, precisando se sujeitar aos pais, maridos e patrões. Leia a nossa crítica.

    Não por acaso, Carol Duarte declarou no palco que este é um filme "sobre a resistência da mulher". Perto da meia-noite, o público deixou o cinema em lágrimas, comovido com a história de décadas atrás, e que ainda ressoa tanto nos tempos presentes.

    No dia 31 de agosto, o Cine Ceará dá início à Mostra Olhar do Ceará, com a exibição do curta Espavento e do longa-metragem Tremor Iê, e da Mostra Competitiva Ibero-Americana, com a sessão do drama peruano Canção Sem Nome. A exibição especial de Maria do Caritó acompanha uma homenagem à atriz Lília Cabral.

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