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    Cyrano Mon Amour: Diretor Alexis Michalik compara cinema e teatro tanto na França quanto no Brasil (Exclusivo)

    Uma comédia sobre os bastidores de Cyrano de Bergerac.

    Esta é a história de um filme sobre uma peça de teatro sobre outra peça de teatro sobre uma pessoa real.

    Vamos por partes: a comédia histórica Cyrano Mon Amour leva aos cinemas não exatamente o clássico Cyrano de Bergerac, interpretado diversas vezes nos palcos e eternizado por Gérard Depardieu no filme de Jean-Paul Rapenneau, mas os bastidores da peça original. Como foi criado um dos textos mais conhecidos da dramaturgia mundial, baseado na vida do verdadeiro escritor Cyrano de Bergerac?

    Para a nossa surpresa, o processo não foi nada fácil. O escritor Edmond Rostand (Thomas Solivérès) sofreu com uma pane criativa, e tinha um prazo curtíssimo para estrear a peça nos palcos. Além disso, os diálogos em versos não ajudavam a atrair investidores. Com o apoio do ator Constant Coquelin (Olivier Gourmet), Rostand contrariou as expectativas e obteve um imenso sucesso popular. 

    Durante sua passagem no Brasil para o Festival Varilux de Cinema Francês, o diretor Alexis Michalik (que também interpreta o dramaturgo Georges Feydeau no filme) falou sobre o projeto visto por 700 mil pessoas em seu país. Ele aproveita para comentar a situação do cinema na França e no Brasil:

    Você sempre teve planos de transpor a peça de teatro ao cinema?

    Alexis Michalik: Sim, esta é uma história longa. Tenho esse projeto na cabeça há 15 anos, e sempre quis fazer um filme. Depois de dez anos, encontrei um produtor disposto a fazer o filme, e começamos a buscar o financiamento. Procuramos por dois, três anos, mas não dava certo, porque era um projeto de época, com figurinos específicos, o que exigia um orçamento considerável. Já meio desesperado, eu sugeri ao produtor: “E se eu montasse essa história no teatro?”. Ele achou uma boa ideia, e então adaptamos o projeto com doze atores nos palcos. Foi um sucesso imenso - inclusive acabamos de festejar a milésima apresentação.

    Graças a esse sucesso, o financiamento para o cinema chegou. É engraçado que o projeto cinematográfico da criação de uma peça, Cyrano de Bergerac, tenha precisado se tornar uma peça por si própria para então virar um filme. O teatro, enquanto tema, não é tão popular. Exceto pelo público cativo do teatro, a grande maioria da população considera o teatro chato, antiquado. Até por isso adaptamos ao formato da comédia popular para poder discutir os bastidores do universo cênico.

    Quais foram os desafios de transpor a linguagem do teatro ao cinema?

    Alexis Michalik: Como é um filme de época, passado em 1897, era preciso trabalhar com diálogos mais eruditos. A maior dificuldade era encontrar um cruzamento entre a linguagem de Rostand, ou seja, a peça de Cyrano, em versos, com a linguagem falada no fim do século XIX. Todos os atores foram avisados, desde o início, que precisariam articular bem as palavras e trabalhar num registro mais empostado. A partir do momento em que todos estivessem no mesmo registro, aquela linguagem pareceria natural.

    A ideia era colocar o espectador de hoje num contexto próximo daquele em que se encontraria o público de teatro da época. Quando você mergulha numa peça magistral como Cyrano de Bergerac, é normal esquecer que está no teatro. Então, é como se estivéssemos diante da captação real, mais próxima do cinema.

    Cyrano, no cinema, ainda é muito conhecido pela figura de Gérard Depardieu. De que modo você dirigiu Olivier Gourmet para o papel?

    Alexis Michalik: É verdade, o filme de Rappeneau é muito conhecido, mas eu já vi muitas dezenas de versões diferentes deste personagem nos palcos. O meu primeiro contato com a peça foi através do texto, então enquanto lia, eu imaginava minha versão particular do personagem. Quanto a Olivier Gourmet, não precisei me esforçar muito para dirigi-lo. Primeiro porque ele estava muito contente de fazer parte do filme e atuar numa comédia.

    O personagem dele é um homem gentil, e ele está acostumado a interpretar dezenas de homens torturados, malvados, complexos. Desta vez, encarnar um homem simples foi um prazer para ele. Gourmet sempre sonhou em interpretar Cyrano, mas não tinha tido a oportunidade antes. Neste projeto, ele teve a oportunidade de interpretar Coquelin que interpreta Cyrano, o que já é meio caminho. Foi uma maravilha trabalhar com ele.

    A história de Rostand e da criação de Cyrano de Bergerac parece improvável, mas você conseguiu conservar muitas passagens históricas dentro desta ficção.

    Alexis Michalik: Eu agi da mesma maneira que Rostand agiu com Cyrano, porque Cyrano foi uma pessoa que existiu de fato. Rostand leu muito sobre seu personagem e depois criou sua própria história a partir dos fatos. O que é fictício em Cyrano de Bergerac é o triângulo amoroso composto por Cyrano, Christian e Roxanne. Eu tentei transpor a ideia do triângulo amoroso fictício ao meu próprio filme, ou seja, o romance envolvendo Edmond, Jeanne e Léo nunca existiu de fato.

    Mas eu quis adaptar o romantismo da peça, assim como a famosa cena da sacada e o longo monólogo sobre o nariz. Todos os emblemas mais famosos de Cyrano de Bergerac compõem a parte fictícia da minha trama, e também fiz algumas pequenas modificações. Afinal, a intenção não era criar um documentário, e sim uma ficção realista, assim como Rostand fez com Cyrano.

    O filme também faz menção ao início do cinema, em 1985.

    Alexis Michalik: Exatamente. Estamos na mesma época em que o cinema nasce. Ainda não se sabe a proporção que ele vai tomar na sociedade, mas é divertido pensar que, enquanto se cria Cyrano de Bergerac, que viria a se tornar o maior sucesso teatral francês de todos os tempos, o cinema estava nascendo, e depois viria a incorporar Cyrano em filmes. Muito antes de Depardieu, diversos atores encarnaram Cyrano no cinema e na televisão, em todas as línguas possíveis. Existiu mesmo um filme mudo sobre o personagem nos anos 1920! Talvez esta seja a obra em língua francesa adaptada no maior número de países. Já ouvi muitos comentários sobre Cyrano estar associado a um ou outro ator famoso que o interpretou em seu país. No México, a figura de Cyrano é consagrada pela atuação particular de um ator num telefilme.

    Era importante para você que os atores se parecessem fisicamente com as pessoas que interpretam, que incorporassem gestos ou um modo de falar específico?

    Alexis Michalik: Sim, um pouco. Mas também não era um grande problema caso tivessem algumas diferenças. O verdadeiro Rostand era muito baixinho, e Thomas Solivérès, que o interpreta no filme, tem quase 1,80m. Mas isso não é nada grave, claro. O mesmo valia para a criação original de Cyrano: poucas pessoas sabem qual aparência o verdadeiro Cyrano tinha. O que importa no final é o personagem, e a criação que o ator efetua a partir deste material. A ficção precisa transcender o real.

    Mesmo o caso de Georges Feydeau, que eu interpreto no filme, correspondia à necessidade de ter um adversário para Rostand. Como Feydeau era o mais bem-sucedido dramaturgo da época, ele foi o escolhido. O próprio Feydeau era muito mais simpático na vida real do que a versão arrogante do filme, mas era divertido criar este tipo insuportável que a gente adora detestar. Eu quis interpretá-lo porque também sou dramaturgo e minhas peças têm funcionado bem, o que cria um paralelo interessante. Isso sem falar que os canalhas são sempre mais divertidos de interpretar.

    É curioso ver a dificuldade que os maiores atores da época tinham para manter suas peças em cartaz. Você enxerga um paralelo entre o trabalho de artista no fim do século XIX e atualmente?

    Alexis Michalik: Esse é o caso do cinema hoje! É dificílimo fazer um filme hoje em dia, e depois de todo o esforço para conclui-lo, muitas vezes ele sai de cartaz depois de uma ou duas semanas. Ainda existem pessoas apaixonadas nesta área, e o cinema sobrevive, mas desde a chegada da televisão e da Netflix, a vida não está nada fácil para o cinema.

    É preciso lembrar que, na época, o teatro não tinha concorrentes. O cinema ainda dava seus primeiros passos, e a televisão não existia. Quando as pessoas queriam se divertir, elas iam ao teatro. Mas existia um público restrito, porque a classe média era inexistente, e os ingressos custavam caro. Em 1897, o acesso à arte era difícil, mas hoje se tornou muito mais democrático, tanto para o teatro quanto para o cinema. As peças de fato duravam pouco tempo em cartaz, era raro ter um sucesso como Cyrano, que permaneceu em cartaz durante três anos. Hoje, nenhum filme fica um ano inteiro de cartaz, mas isso ainda existe com o teatro.

    Mesmo assim, a França ainda é considerada um exemplo de modelo de produção nacional. O cinema francês se mantém entre os quatro países do mundo com a maior bilheteria para os filmes nacionais em relação aos norte-americanos.

    Alexis Michalik: É verdade. Eu estava conversando com alguns amigos brasileiros, e aproveitei para perguntar quais eram os maiores sucessos de bilheteria no Brasil. Vi a lista dos dez maiores sucessos no Brasil, com Tropa de Elite 2 e as comédias. Os maiores recordes estão na casa dos 10 milhões de espectadores, dentro de um país com 190 milhões de habitantes!

    Na França, temos apenas 60 milhões de habitantes, mas os nossos maiores sucessos chegaram a 20 milhões de espectadores. Isso significa que um terço da população mundial assistiu a filmes como Intocáveis ou A Grande Escapada. A França ainda incentiva muito a produção local. Se pensarmos em termos proporcionais, Cyrano Mon Amour, que chegou a 700 mil espectadores na França, teria mais de 2 milhões de espectadores no Brasil. É uma loucura pensar nessas proporções.

    Mas o cinema francês tem muito incentivo financeiro do governo, e diversos acordos de produção com todos os canais de televisão. Temos muitos novos diretores aparecendo a cada ano. O espectro da nossa produção vai dos filmes sem dinheiro nenhum aos projetos gigantescos, e entre eles existem todas as formas de filmes, de orçamentos e modelos mais diversos.

    Cyrano Mon Amour é um caso particular por possuir um orçamento considerável para um longa-metragem de estreia, mas que ainda está longe da estrutura das maiores produções nacionais. Ele é ao mesmo tempo caro, por causa dos figurinos e cenários, e também constitui um filme de autor, por lidar com o teatro do século XIX. Ele é uma comédia popular, mas não do tipo que arrasta milhões aos cinemas. Este filme fica realmente no meio do espectro. Fico muito feliz de ocupar este espaço intermediário.

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