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    "Não quero ser xingada, quero que as pessoas discutam", afirma Dira Paes sobre a mistura de sexo e religião em Divino Amor (Exclusivo)

    Uma sociedade controlada pela religião.

    Num futuro próximo, o Brasil é dominado por evangélicos que controlam não apenas a política, mas a economia e a sociedade. Neste contexto, até o sexo é vigiado, e deve acontecer dentro dos cultos... Joana (Dira Paes), uma mulher bastante religiosa, pede a Deus que lhe dê um filho em recompensa à vida de boa cristã. Mas o filho nunca chega... O que poderia estar errado?

    Considerado como distopia para alguns espectadores, ou como utopia com outros, Divino Amor tem despertado ótimas reações desde que estreou nos festivais de Sundance em Berlim. Agora, em cartaz nos cinemas brasileiros, o filme dirigido por Gabriel Mascaro suscita evidentes comparações com o governo atual.

    A simpática Dira Paes conversou com o AdoroCinema, durante a Berlinale, sobre o ousado projeto:

    Berlinale

    Como reagiu à primeira leitura do roteiro?

    Dira Paes: Eu tinha feito um pedido de Réveillon, que era na verdade uma reflexão: eu queria ter mais brechas para filmar, para trabalhar num longa-metragem, além da televisão. Então comecei a fazer várias participações para não deixar de fazer cinema. Isso foi me dando sede de ter personagens grandes novamente, que participam da trama do começo ao fim. Queria ficar dois meses envolvida num projeto, sem outras preocupações.

    Assim que fiz esse desejo, me veio o roteiro do Gabriel Mascaro e eu pensei: “O meu desejo aconteceu!”. Curiosamente, a Joana passa por uma trajetória de espera semelhante. Este é um roteiro incrível, de um cineasta que eu já vinha observando antes, um cineasta que eu vi nascer, de certa maneira. A gente trabalhou juntos em Baixio das Bestas, no qual ele fazia assistência de direção.

    Então chegou esse projeto muito consistente, muito audacioso pela profundidade do tema. Isso para mim foi um presente, mas ao mesmo tempo um grande desafio enquanto atriz - e é justamente o que eu queria: ser desafiada. Quando você ganha o personagem que te tira do lugar de conforto, você está testando a sua vontade artística de existir de novo, de se reinventar e se rever de outras maneiras. 

    Que desafios específicos a Joana trouxe para você?

    Dira Paes: Ela é muito diferente de mim desde o gesto, a maneira de se expressar, até mesmo a consciência da fé. O meu olhar foi muito amadurecido durante o processo de ensaios. Eu tinha uma concepção prévia sobre a Joana que precisei abandonar para acreditar, de fato, na capacidade de me dedicar a uma religião a ponto de não contestá-la, a ponto de abraçar todo o radicalismo que ela oferece.

    Precisei encontrar este caminho durante os ensaios, porque não poderia ter o viés do julgamento em nenhum momento, e o espectador também não poderia duvidar da fé dela. Isso poderia distanciá-lo do filme e fazer com que se divertisse com aquelas situações ao invés de levá-las a sério. Para mim, esse foi o grande desafio: mergulhar na capacidade de absorver aquela fé como uma maneira de viver, como uma maneira de raciocinar, como uma maneira de pensar. 

    Divulgação

    Você fez pesquisas específicas em grupos religiosos?

    Dira Paes: Fizemos quatro semanas de laboratório, incluindo exercícios de autoconhecimento que até se assemelham um pouco com as práticas do Divino Amor. Isso incluía práticas teatrais: a questão de confiar seu corpo e se jogar para trás faz parte dos exercícios de autoconfiança. Começamos com estes exercícios, ainda sem personagem. Foram oito horas diárias de trabalho contínuo, com intervalos apenas para ir ao banheiro e se alimentar. O corpo já estava pronto, mas a alma da Joana precisava chegar.

    Quando começou a apropriação da personagem, fizemos o levantamento de algumas cenas. Isso aconteceu na produtora, e o Gabriel conseguia se deslocar rapidamente para assistir a alguns momentos dos ensaios e ele apontar, durante as improvisações: “Nesse momento você está em close”. Deste modo passamos a ter dimensões, a construir o corpo da personagem. A Joana é muito introspectiva, sem grandes arroubos emocionais. Tudo nela é contido. Ela é totalmente o contrário de mim, dos gestos, do sorriso, das expressões faciais muito radicais…

    Percebo que ela é uma personagem que transmite confiança: o público pode entender a fé dela sem julgamentos. Não estamos falando de opção religiosa, de orientação religiosa. Estamos pensando como é possível se deixar, dentro de um Estado laico, ser dominado por dogmas religiosos que decidam a sua vida socialmente. Nesse sentido, é um diálogo não apenas com o Brasil, mas com todo o mundo. 

    É difícil não fazer conexões com o Brasil de 2019, embora o projeto tenha nascido anos atrás. 

    Dira Paes: Quando eu li o roteiro, já achava que a gente estava dialogando com um Brasil emergente. Mas estamos falando de cinco anos atrás, e este roteiro já estava pronto quando o Brasil sofreu uma grande mudança de direção política. Existe um aspecto visionário em anteceder essas questões, o que é um mérito do Gabriel. Ele é capaz de criar uma história que discute a religião sem julgá-la, nem julgar a fé em si.

    Ao mesmo tempo, ele coloca em perspectiva este modelo de futuro nos espera. É uma distopia? Os retrocessos têm acontecido em velocidade tão grande que a gente pode em pouco tempo estar dentro desta sociedade conservadora que não permite as diferenças. Isso é um fato. Não diria que houve uma coincidência, mas, ao mesmo tempo, houve uma predestinação que esse filme estreasse em pleno momento que encontramos estes novos líderes no Congresso e no Senado.

    Divulgação

    Você tinha algum receio com as reações que o filme poderia despertar?

    Dira Paes: Olha, existem muitas questões sociais polêmicas que nós nem mesmo abordamos! O filme dialoga com alguns escândalos em que a religião e o sexo estiveram associados. Este ano nos fez refletir muito sobre isso: o Estado é laico, mas existe uma religião que claramente se apropria desse discurso para um plano de poder político. Mas, ao mesmo tempo, é muito importante perceber que o filme não aponta o dedo para uma religião específica. Ninguém pode vestir a carapuça, porque muitas crenças funcionariam neste contexto.

    Desde que o mundo é mundo, religião e sexo são temas tabus. Mas tivemos uma boa aceitação, até por causa da recepção positiva em Sundance. Isso acontece porque estão caindo as fronteiras do humanismo em tempos de "Me Too". Estamos falando sobre dogmas humanistas debatidos no mundo inteiro, independente de você ter uma desigualdade abissal, de ser o país que mais mata LGBTs no mundo, de ser um país preconceituoso, racista e violento. Precisamos caminhar para um lugar mais civilizado, de compreensão mútua. Divino Amor vem cumprindo um papel muito bacana de nos encorajar a falar sobre isso. A gente não pode se calar diante dos grandes temas que estão em voga nesse momento.

    Ao mesmo tempo, o filme tem bastante leveza e humor.

    Dira Paes: Ele é um humor bem sutil, e cítrico também. Isso me dá muita alegria porque percebo que o olhar das pessoas sobre o filme é ainda mais maduro do que o meu, porque não estão envolvidos nesse assunto e conseguem captar o filme da melhor maneira, entendendo a importância dessa discussão. Como estou envolvida no filme, acabo tendo preocupações, é lógico. Eu não quero ser mal compreendida, amaldiçoada nem xingada: quero que as pessoas discutam. A gente precisa se alfabetizar nesse sentido, porque a criminalização dos artistas acontece quando eles não correspondem às expectativas de uma sociedade conservadora. Mas esta sociedade esquece que o lugar da arte é a transgressão. Se a arte não transgredir, quem vai transgredir? Quem vai inverter os valores? Quem vai subverter a ordem? 

    Infelizmente os tempos polarizados emburrecem as pessoas. A gente cria um pudor para abordar certos temas para não tocar em feridas. A ferida do racismo está aberta. Ainda bem que agora existem as redes sociais, que movimentam uma discussão sobre isso. No entanto, ao mesmo tempo, as redes sociais propagam fake news, que acabam tendo mais destaque do que a própria verdade. Isso também precisa ser combatido, porque é crime. É o papel da arte fazer com que as pessoas entendam algo de maneira indigesta às vezes, o efeito é maior. A gente está cumprindo um papel de ter um filme brasileiro se destacando entre quatorze mil títulos inscritos [em Berlim]. Foram quatorze mil títulos! 

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    O cinema brasileiro tem conquistado alguns de seus principais prêmios na época em que recebe as críticas mais duras dentro do país.

    Dira Paes: Exato. A gente veio a Berlim com a verba que você pode imaginar que existe para divulgação, ou seja, nada. Eu pagando para estar aqui, entende? Como uma afirmação de que é necessário levar cultura brasileira ao mundo e dialogar com as pessoas que tenham o mesmo cotidiano que eu. Este é um investimento na arte que enfrenta diversos desafios. O cinema brasileiro, apesar de todas as dificuldades de captação, filmagem, distribuição, tem uma presença valorosa, respeitada em todas as edições dos principais festivais do mundo. Isso é fruto do talento dos cineastas, apesar do mínimo investimento disponível. Esta é uma coprodução envolvendo cinco países que avaliaram o roteiro e pensaram: “Vale a pena fazê-lo”.

    O projeto saiu da cabeça do Gabriel e precisou enfrentar diversas etapas para ser concretizado. O roteiro foi selecionado para desenvolvimento em Roterdã, por exemplo. O público precisa entender que o tempo de feitura do filme não é imediato. Muita gente vai pensar que ele responde aos dias atuais, mas foi pensado há cinco anos. Quem estava no governo há cinco anos? Quem estava no poder nesta época? Já tinha acontecido o impeachment? São estas as perguntas que as pessoas precisam fazer.

    O filme é muito sagaz ao perceber que estamos à beira de uma tentativa de controle da sociedade pela religião, e isso é um desserviço para a evolução da humanidade. É disso que o mundo inteiro está falando, é disso que o festival de Berlim está falando quando coloca um júri composto 50% por mulheres, 50% por homens. É a igualdade de gênero entre diretores e diretores, e Divino Amor vai além nessa questão.

    Mas eu nunca trabalhei na zona de conforto, nunca! A vida é cíclica e te coloca à prova. É isso que me interessa. Eu quero me descobrir. Tenho trinta e cinco anos de carreira, mas eu me sinto uma jovem atriz e acredito que os meus melhores personagens ainda estão por vir. Eu sinto que ainda tenho muito a oferecer ao público. Tomara que Divino Amor marque o início de um novo momento. Para mim, já está sendo.

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