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    Flávia Castro discute a memória nacional em Deslembro: "Como é possível as pessoas acreditarem que não houve ditadura?" (Exclusivo)

    Uma delicada jornada de descoberta, em cartaz nos cinemas.

    Nesta semana, os cinemas brasileiros recebem o primeiro longa-metragem de ficção da aclamada diretora Flávia Castro (do documentário Diário de uma Busca). Deslembro narra a jornada de descobertas da adolescente franco-brasileira Joana (Jeanne Boudier), que retorna de Paris ao Rio de Janeiro no período pós-ditadura. Aos poucos, ela passa a compreender as feridas do exílio em sua família.

    O belo drama se baseia em algumas histórias pessoais da cineasta, e também dialoga diretamente com a vivência de Boudier e de Sara Antunes, que interpreta a sua mãe (e cujos pais lutaram contra o governo militar). Ao invés de uma exposição didática da nossa história, Castro privilegia o impacto destes momentos na vida dos cidadãos.

    O AdoroCinema conversou com a cineasta sobre Deslembro, selecionado no Festival de Veneza:

    Andreas Rentz/Getty Images

    Em que medida o projeto pode ser considerado autobiográfico?

    Flávia Castro: Bom, o meu pai não foi desaparecido político. A história da Joana não é a minha história, mas tem muitas sensações parecidas com as minhas porque, de fato, eu morei no exílio, voltei na mesma época que ela. Então as vivências da Joana remetem muito à minha própria experiência. Tive a mesma relação com a música e a literatura, mas não tanto com o enredo em si, nem com essa questão tão importante do pai desaparecido.

    Como trabalhou com o elenco jovem um tema tão complexo quanto a ditadura militar?

    Flávia Castro: Na verdade, não vejo as coisas assim. O que os jovens atores vivenciam ali são coisas que as crianças, na época, vivenciaram também. O tema político está em uma camada do filme, mas este também é um filme sobre família, sobre relações, sobre o cuidado de uns com os outros, tem a relação da Joana e o irmãozinho menor... Então, primeiro eu contei para eles a história e falei da ditadura militar, falei o que era e o que significava, mas no dia a dia da filmagem, eles não liam o roteiro. Estávamos cuidando daquela historinha que fazíamos ali.

    Você narra a história de três gerações de mulheres. De que modo cada geração interpretou a ditadura?

    Flávia Castro: De certa forma, a mãe (Sara Antunes) ainda não consegue falar desse passado porque é muito difícil, há muitas incógnitas, não se sabe o que aconteceu realmente com o pai. Esta foi a situação de muitas mulheres e homens que perderam pessoas queridas durante a ditadura. Já a avó (Eliane Giardini) faz um trabalho de busca com outras mães para saber o que aconteceu, mas ao mesmo tempo, ela consegue viver o presente. Ela é capaz de transmitir para a neta o pouco que sabe dessa história - e isso me interessa muito, porque a avó também representa a transmissão. A leveza dela, para mim, era fundamental porque eu não queria fazer uma personagem que tivesse só o peso do passado. Ela é uma avó “bon vivant”, que ouve Pink Floyd, que fuma, enfim, que tem uma vida.

    Divulgação

    Qual é o espaço para a poesia num filme sobre exílio e tortura?

    Flávia Castro: Para mim é muito natural, foi assim que surgiu o projeto. O filme todo se constrói a partir do ponto de vista da Joana, através da forma como ela lida com o mundo. A literatura, a poesia e a música no filme surgem dessa vivência adolescente marcada por descobertas. É uma bobagem a gente acreditar que só se vive uma experiência por vez. Você pode muito bem viver ao mesmo tempo a busca pelo pai desaparecido e a tua adolescência - uma coisa alimenta a outra, de certa forma. As coisas não são separadas, tudo se desenvolve ao mesmo tempo. O filme não quis focalizar apenas a questão política e apenas a questão da busca dela. A ideia era dar mais dimensões a essa personagem.

    De que maneira a sua experiência com documentários influenciou o primeiro longa de ficção?

    Flávia Castro: Eu tinha dois curtas de ficção, mas de qualquer forma o filme tem questões de documentário pela forma como filmamos em muitos momentos, quase sem as crianças perceberem algumas vezes. Havia uma disposição e uma abertura para o que estava acontecendo ali na hora, que vem muito do documentário.

    Divulgação

    Deslembro estreou primeiro na Europa. De que maneira o público estrangeiro reagiu a uma história tão tipicamente brasileira?

    Flávia Castro: Foi incrível. O filme estreou em Veneza e depois viajou muito na Europa, já ganhou um monte de prêmios. Eu passei três meses na França, em vários festivais. Esta história poderia acontecer em qualquer lugar, qualquer país, ao mesmo tempo em que é muito nossa, muito ligada à nossa falta de memória enquanto país. O filme toca as pessoas, então a reação em Veneza foi impressionante, muito forte, dentro de um cinema gigante com 1.300 lugares.

    Desde então, as outras viagens foram muito contaminadas pelo Brasil de hoje. Todas as perguntas, de alguma forma, se voltaram para o presente. Eu não acho isso ruim, mas é curioso para um filme que foi pensado muito antes do que está acontecendo - eu comecei a desenvolver a ideia em 2009! Então ele acaba sendo fruto do que estamos vivendo, e também uma resposta no sentido de que é necessário trabalhar a memória. É necessário revisitar as nossas questões enquanto povo. Deslembro toca na questão da falta de trabalho de memória que se fez nesse país: como é possível, em 2019, pessoas acreditarem que não houve uma ditadura, ou que a ditadura foi boa? É terrível isso convivermos com isso.

    Deslembro dialoga com a vontade de não apenas esquecer o passado sombrio do Brasil, mas também reescrevê-lo de um ponto de vista diferente.

    Flávia Castro: Na verdade, o filme constitui uma história muito pequena no sentido de trazer a jornada íntima de uma menina com uma questão que a atravessa, até se conectar com a grande história de um país. Desde que voltei do exílio, quando tinha 14 anos, sempre me incomodei muito com o fato de que isso não se falava. Quando eu cheguei no Brasil, me perguntavam na escola se o meu pai era diplomata, porque ninguém sabia o que havia acontecido. Teve um primeiro momento em que o tema foi mediatizado, e depois se interrompeu, como se tivesse acabado, resolvido. É uma questão política também: acredito que os governos - inclusive os governos do PT - não foram suficientemente contundentes na política da memória.

    Divulgação

    Em termos de produção, acredita que seja mais difícil viabilizar um projeto como este dentro da estrutura audiovisual brasileira?

    Flávia Castro: É um pouco difícil falar disso agora porque estamos em um momento de muitas incertezas quanto ao futuro. A gente não é capaz de medir o tamanho do estrago que está sendo feito. Além disso, há essa criminalização da cultura de uma forma geral. Por cima das leis, das coisas que vão ser mudadas ou não, existe uma criminalização da cultura que só aumenta ao longo dos anos, como se fôssemos bandidos que vivem do trabalho dos outros, como se tudo o que a gente faz não fosse trabalho, enfim... É uma loucura total.

    Deslembro vem dessa leva de filmes que puderam ser produzidos de acordo com as leis de audiovisual implementadas há 12, 13 anos. Ele realmente se inscreve nisso. Eu não sei se hoje seria possível fazer este filme, provavelmente não. Estamos em um momento ainda muito instável, tudo o que vemos é horrível como perspectiva, mas precisamos continuar lutando, resistindo a isso.

    De que modo acredita que poderíamos reaproximar o público brasileiro deste cinema mais questionador?

    Flávia Castro: Essa é outra questão super importante, que existia antes dos conflitos atuais, e que diz respeito à formação de plateia. É muito importante valorizar o cinema brasileiro, levá-lo para as escolas, fazer com que os jovens se interessem pelos filmes que a gente faz, porque falta o trabalho de sensibilizar o público. Já fazemos isso com a literatura, por exemplo. Acredito que seja fundamental a formação de plateia.

    Eu estive, por exemplo, na França em um festival que se chama Ciné Junior, destinado aos adolescentes da periferia de Paris. Todos os anos, as escolas levam os adolescentes para ver alguns filmes escolhidos pelos professores. Deslembro foi mostrado para os alunos por lá, assim como Los Silencios, da Beatriz Seigner, e As Duas Irenes, do Fábio Meira. Os jovens assistiam, discutiam com diretores, com os atores, e faziam um trabalho em sala de aula sobre aqueles filmes. Isso é formação de plateia, o que na França acontece com os jovens desde crianças, desde a creche.

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