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    Christiane Torloni destaca a potência afetiva de Amazônia, seu novo documentário (Entrevista Exclusiva)

    Conversamos com a estrela por ocasião do lançamento de seu primeiro filme como cineasta, O Despertar da Florestania.

    A luta da cidadania para a luta da florestania, ou seja, a consciência de proteger o meio-ambiente ao passo em que se aceita que a humanidade também é parte integrante do ecossistema no qual vive, apesar de toda a destruição causada pelos seres humanos. É este processo de intenso comprometimento para com a preservação ambiental que move os esforços da atriz Christiane Torloni há décadas. Mas a estrela das telenovelas globais logo percebeu que, para promover a florestania, precisaria aumentar o escopo de suas ações para além das expedições realizadas ao coração da Floresta Amazônica.

    Assim, ao lado de seu colaborador de longa data, o montador e diretor Miguel Przewodowski, a atriz realizou a passagem para o lado contrário das câmeras. Agora como cineasta, Torloni lança seu documentário de estreia, Amazônia, o Despertar da Florestania, composto por cenas registradas pela realizadora durante suas andanças amazônicas, imagens de arquivo e depoimentos de algumas das principais mentes pensantes do Brasil. Leia a seguir a conversa do AdoroCinema com Torloni e Przewodowski por ocasião da estreia da não-ficção:

    Pergunta: Ao mesmo tempo em que promove uma crítica social e política muito forte e necessária, o filme também reserva um importante espaço para a conexão humana, para o contato e para o debate. Como foi conjugar o afeto pela causa e a necessidade da luta?

    Christiane Torloni: Não teria como não ser assim. Quando há amor, você urge proteger. Isso faz parte: quem ama, guarda [...] O filme parte de um lugar do artista, que é um lugar emocional, cardíaco, para depois poder ganhar a esfera do racional, do mental [...] Emocionalmente, a Amazônia é tão densa, profunda, mágica e misteriosa e sedutora que só uma ferramenta como o cinema poderia ser a ponte, o instrumento de materialização. Eu nunca tinha produzido nem dirigido cinema, mas disse: 'Não é a sétima arte, a arte da magia?' Só o cinema podia revelar essa Amazônia que vem se revelando para mim há mais de 30 anos.

    Essa é a história da expedicionária e da atriz com as pessoas que estão no filme. Como essas pessoas foram atingidas por mim durante todas essas décadas? [...] Essa história de amor precisava ser contada amorosamente. Se não, este seria mais um documentário feito tecnicamente e de uma maneira um pouco exótica, como muitos já foram feitos. Para que fazer outro? Já foram feitos. Então, o importante é que o filme vem de um lugar amoroso.

    P: E como é que surgiu a parceria entre vocês? Como foi sua entrada no projeto como codiretor?

    Miguel Przewodowski: A nossa parceria surgiu há 30 anos [...] E há sete anos, a Christiane veio à minha casa com um material, e nós sempre conversamos sobre o que estamos fazendo. Ela queria que eu visse um material que ela tinha gravado nas andanças dela pelo Amazônia Para Sempre [projeto de Torloni]. Eu vi e achei bacana o material, disse a ela que ela estava fazendo um filme. "Estou fazendo um filme?", ela perguntou, e eu disse que sim. E ela perguntou: "Mas que filme é esse que estou fazendo? Você quer me ajudar a descobrir que filme é esse?" Eu disse claro. Então, entrei no projeto a partir desse convite dela e nós começamos a lapidar essa ideia, esse filme [...] As pessoas no nosso filme falam de um lugar muito desarmado. Já vi alguns dos entrevistados em outros filmes, que são filmes legais, mas os vi falar de uma maneira técnica, fria. E nós queríamos justamente trazer para o filme esse lugar mais emocional, que a pessoa pudesse falar desse lugar que está além do intelecto.

    P: Atravessamos hoje, no Brasil e no mundo, uma era marcada pelo acúmulo de informações; vivemos um bombardeio midiático que apenas acumula ruído à comunicação. Como ultrapassar esse ruído do acúmulo de informações, das fake news e também das teorias de conspiração, para produzir algum sentido para o espectador e levar adiante a mensagem do documentário?

    CT: Eu e Miguel estamos nessa empreitada há anos, e fomos atingidos, como todos nós brasileiros, por muitos ruídos durante a produção e montagem do filme. Chegamos num momento de dizer: "estamos em uma ilha". E decidimos nos proteger nessa ilha [...] Se não, você deixa esse ruído te atingir de uma maneira que o norte vira leste. E você não pode perder o norte [...] O filme tem, sim, uma intenção cardíaca. Quando você ama, o tempo não para? Quando você está do lado do seu bem querer, parece que o tempo para, e depois você diz que o tempo voou, que você não viu, que o tempo parou. Então, a ideia central do filme é, por uns 100 minutos, criar o tempo para o espectador se deixar ser afetado. Depois, como o filme vai agir em você, dependerá de todas as suas conexões e ancestralidades.

    O Despertar da Florestania é biográfico de um ponto de vista de uma parcela do tempo do Brasil, e se ele puder atingir você, na biografia que está acontecendo agora, então o filme chegou lá: essa é a ideia. Eu e Miguel tivemos a luz de elencar criaturas que fizeram o tempo do Brasil valer a pena, que dedicaram suas vidas para isso. Temos Orlando Villas-Boas, Darcy Ribeiro, Eduardo Viveiros de Castro... Essas criaturas são pontos cardeais do Brasil [...] Eles não são os únicos pontos cardeais, mas são para mim pontos cardeais de encontros afetivos. A partir desse afeto pelo mesmo objeto — que é a Amazônia, a Mata Atlântica, o verde, a florestania —, você diminui o ruído e foca em uma coisa só.

    MP: Acontece de as pessoas acreditarem em coisas sem ter o acesso à continuidade da informação. Uma continuidade histórica, de entender que o que temos foi porque alguém construiu antes, de entender aquilo que vivemos, de bom ou de ruim, para chegar nessa construção. O filme tenta ir na contramão desse fenômeno que vem acontecendo, que faz as pessoas acreditarem, por exemplo, que a Terra é plana [...] A pergunta que fica é: que legado virá desse lugar de esquecimento, de alienação, de omissão? Esse lugar triste.

    Vivemos um momento em que o país está triste. Já vivemos um momento mais feliz, um país que de pessoas mais esperançosas e movimentações para construção de algo, não uma filosofia de destruição. Como é possível ter um pensamento governamental de destruição? [...] Sem pensar, não dá. Precisamos sentir e pensar. E saber que a religião tem seu lugar e a ciência também. A ciência nos diz coisas a partir de dados comprovados. O aquecimento global não é uma ficção: é um fato. Um fato que empiricamente nós podemos perceber. Quem é que não percebeu a mudança climática?

    P: Como alguns dos eventos presentes no filme, tais como o rompimento da barragem de Mariana, em 2015, e as manifestações de junho de 2013 modificaram o resultado final do documentário?

    MP: Nossa preocupação não era criar um filme factual ou um filme-denúncia. Era criar um filme que fizesse o público refletir sobre o lugar para o qual estamos indo, e por que estamos indo dessa forma. É como o depoimento do André Trigueiro: "crescer por crescer é a filosofia da célula cancerosa". Para mim, esse depoimento é fundamental: crescer por crescer não tem sentido. Então, queríamos fazer um filme que levasse o espectador a olhar para isso [...] A nossa ideia era tentar criar esse lugar provocativo da reflexão para que as pessoas saíssem do cinema e levassem a reflexão para suas casas, para os seus companheiros e para suas companheiras, para conversar sobre isso. Não estávamos preocupados com o factual e por isso seguimos esse caminho mais emocional.

    A ideia era desconstruir um olhar para chegar à pluralidade que a gente vive. A informação é tanta, mas a gente sobrevive e pensa [...] Acabou sendo natural, dentro desse olhar que se fragmenta, trazer coisas de épocas diferentes. Embora tenhamos ficado muito tempo amarrando a questão cronológica do filme, porque é uma coisa estrutural, o filme salta no tempo [...] Gerações e gerações vão sentir Mariana, e isso não pode passar desapercebido. Brumadinho também não. Não podemos ter mais situações como essa que aconteceu. Não pode ter um vazamento em Brumadinho e nós ficarmos aqui, sentados de braços cruzados, observando o vazamento chegar até o Rio São Francisco, um dos poucos rios que têm uma fauna e uma flora mais preservada. Essa atitude precisa mudar.

    P: Como você enxerga, sendo tanto uma ambientalista quanto uma cineasta agora, as políticas públicas brasileiras no âmbito do meio-ambiente e do audiovisual? Como você enxerga esse cenário que está se desenhando?

    CT: O problema não é o "que", mas o "como". Há um movimento atrapalhado acontecendo. Se você vai jogar xadrez, não pode chegar atabalhoado. Os movimentos precisam ser pensados. Percebo que há algo atrapalhado acontecendo: são jogadores que não sabem jogar xadrez. Talvez eles saibam jogar bem pingue-pongue. As leis de incentivo podem e devem ser melhoradas? Sim. Instrumentos de fiscalização e de fomento devem ser melhorados? Sim. Políticas de meio-ambiente devem ser ajustadas e melhoradas? Sim. Agora, o problema não é o "que", mas o "como" [...] Os fóruns mundiais não podem ser desqualificados. As pessoas que pensam nestes lugares, como foi em Paris, como foi na ECO92, são as melhores cabeças do planeta e que estão dedicando suas vidas a pensar o planeta. Como desqualificar essas pessoas todas?

    Você vai desmontar os pensadores do mundo? Quando você tem um país que está ameaçado de não ter mais ciências sociais no seu ensino, ameaçado de suas universidades perderem 30% do investimento, isso é muito perigoso [...] A educação não tem que ter a ver com política partidária. E quando tem, isso está errado: a educação é um projeto de Estado, não de um partido. Nesse sentido, o filme também traz um apelo às diferenças. Não me importa e não me interessa em quem você votou. Quero que estejamos juntos no mesmo fluxo. E é muito complicado quando a grande ferramenta para que esse fluxo tenha saúde, que é a educação, é desmontada. Educação significa identidade, e cultura é identidade. Os dois grandes pilares da fundação de um povo estão sendo chacoalhados. Sem a educação e a cultura, cadê a identidade? Só podemos ter identidade com educação e cultura. A história do mundo é essa. Onde você ataca esses dois pilares, você tira o chão de um país, que, aliás, é o que está acontecendo aqui.

    Amazônia, o Despertar da Florestania já está em cartaz.

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