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    Tirando o Mofo: Oito e Meio, o fim e outras coisas mais

    Eita, título dramático...

    Em que ponto, no decorrer de um filme, no universo do cinema, descobrimos que uma obra-prima é uma obra-prima? Frente aos quadros, temos a certeza ou não de vermos o trabalho de um gênio porque temos a chance de confrontar a tela, durante o tempo que desejarmos, durante o tempo necessário para que a pintura mesma nos invada. Ou, com um livro nas mãos, sabemos estar diante de um mestre pela música que irrompe das palavras, das pausas e dos silêncios. Mas quando é que isto acontece em um filme? Quando é que a certeza toma conta? Talvez só mesmo no apagar das luzes, em meio à cena final.

    Ocasionalmente, no entanto, aparece um longa-metragem que arrebata o coração do espectador em seus primeiros frames, antes mesmo que qualquer palavra seja proferida, antes mesmo que exista algo além da imagem. Ora, já falamos sobre filmes como estes por aqui anteriormente, como nos casos de Touro Indomável e Verdades e Mentiras, mas, até o momento, nada foi dito sobre uma joia como esta que encerra os trabalhos da coluna Tirando o Mofo: uma obra-prima que prova ser obra-prima no início, no meio e, ainda mais, em seu fim. Estamos falando, é claro, de Oito e Meio, o auge da carreira de Federico Fellini.

    Cinema versando sobre o Cinema, o oitavo filme e meio — contabilizando seus aproximadamente sete longas e um curta, parte de uma antologia, anteriores — de um dos maiores cineastas da história é, à primeira vista, um relato autobiográfico, testemunho de um artista cuja criatividade está em branco; que insiste, segundo os críticos, em andar na contramão — neste caso, produzir fantasias ao invés de obras socialmente engajadas, como os filmes do neorrealismo italiano, movimento cinematográfico que denunciou as condições miseráveis da população italiana no pós-2ª Guerra —; e que perdeu contato com a beleza.

    Incessamente perseguido pela mordaz trilha sonora e pelos comentários de amigos e de inimigos, o realizador Guido Anselmi (Marcello Mastroianni) está esgotado: tudo o que quer, como seus sonhos indicam — à época, no início dos anos 1960, Fellini estudava psicologia, sendo um adepto e admirador da filosofia psicanalítica Carl Jung —, é desaparecer, deixar-se flutuar para longe, escapar das prisões e dos julgamentos de terceiros, como estabelece a primeira sequência de Oito e Meio, a do engarrafamento infernal. Tudo que almeja, em suma, é o silêncio e a beleza, não à toa representados por Claudia Cardinale.

    Mas as filmagens de seu grandioso próximo projeto estão atrasadas, o próprio roteirista que Guido convocou para ser seu colaborador não acredita no sucesso da trama, o orçamento não para de crescer e ser estourado, a imprensa segue perseguindo cada um de seus passos e, para colocar a cereja no topo do bolo, o protagonista, espécie de alter ego de Fellini, vê seu casamento com Luisa (Anouk Aimée) tentar equilibrar-se em vão à beira do abismo. Na iminência de um colapso nervoso, Guido, esgotado, busca refúgio no sono, nos delírios de olhos abertos, em casos vazios e no adiamento constante da produção.

    A vida, entretanto, como Fellini bem sabe, é um trem de alta velocidade, a correr em direção ao futuro, sempre em direção ao futuro, deixando o passado para trás, abandonando as ruínas dos pesadelos e das mágoas, e transformando "os boas vidas" em imagens do retrovisor. A vida, quer Guido queira ou não, não pede passagem, faz do sonho a realidade, da ficção a verdade, independentemente da abordagem irreverente e infantil do protagonista diante dos problemas, das pressões e das obrigações, mesmo que essa máscara exista para que Guido se defenda dos parasitas e sanguessugas ao seu redor.

    Por isso mesmo é que, a despeito de seu divertido e agridoce caráter de comédia dramática, Oito e Meio é uma espécie de conto de sobrevivência face à depressão e à angústia existencial, face à dissolução eterna da identidade, e da jornada impossível de autodescoberta humana, que quanto mais tenta aproximar-se de si, mais afasta-se. E em sua obra-prima, Fellini argumenta e propõe que a saída para tal desespero, para tal medo não está no cinema sério, agudo e socialmente preocupado, mas no cinema das memórias, no cinema dos afetos e dos sentimentos e das conexões — e Oito e Meio é essa saída em forma de filme.

    Não é produto do acaso que o título original do projeto fosse "A Bela Confusão": é a partir da crise pessoal e artística de Guido, que também é a sua crise pessoal e artística, que Fellini, então na casa dos 40 anos, encontrou a maneira de realizar seu épico microscópico. Microscópico porque, diferentemente de ...E o Vento Levou ou Lawrence da Arábia, Oito e Meio não tem cenas de guerra, planos gigantescos ou mesmo a ação das batalhas. Mas épico precisamente porque vai ao fundo do íntimo humano, retratando os desejos, os sonhos, as fraquezas e tristezas e pequenas alegrias, as alegrias possíveis e as impossíveis.

    Contudo, não é apenas a nível espiritual, por assim dizer, que Oito e Meio destaca-se do resto: exemplar dos "filmes em abismo", ou seja, dos filmes que têm camadas e camadas dentro de camadas anteriores, em uma estrutura espiral cada vez mais complexa. Neste caso, conforme Fellini faz o filme que retrata Guido tentando fazer seu filme, ambos são realizados, em conjunto e espelhando um ao outro. É só mais um jeito que Fellini encontrou para mixar realidade e ficção, como fizera anteriormente no igualmente clássico Noites de Cabíria e como faria posteriormente no premiadíssimo Amarcord, entre outros longas.

    Nada disso seria possível sem Mastroianni, é claro. Um dos maiores atores de todos os tempos, o italiano entrega em Oito e Meio aquela que é a sua melhor performance, ainda melhor do que a de A Doce Vida, também de Fellini, estampando as questões postas pelo cineasta no rosto confuso e o espírito irreverente do comandante no seu gestual cool, apesar da ansiedade paralisante e do temor por um futuro que Guido parece ser incapaz de alcançar. Os diretores italianos são chamados de maestros, mas atores como Mastroianni também deveriam ser citados assim pela profundidade de suas interpretações e presenças.

    E quem diria que nasceria uma obra-prima da própria incapacidade sentida por Fellini a dar sequência à sua obra-prima anterior, o supracitado A Doce Vida? "Dessa forma, ao confessar sua incapacidade em fazer este filme, paradoxalmente realizou seu maior filme [...] Ao recontar, através de Oito e Meio, a impossibilidade de fazer um filme [que é a impossibilidade de produzir arte, no fim das contas] acabou criando uma obra-prima que praticamente caiu em seu colo", escreve Tullio Kezich, biógrafo do realizador, em seu ensaio sobre o longa, e sobre o vazio encarado pelo maestro Fellini, para a Criterion Collection.

    Enfim, que filme melhor do que Oito e Meio, um filme sobre um filme sobre um filme, e daí por diante, para fechar a décima quinta e derradeira edição da coluna Tirando o Mofo, que durante estes últimos seis meses abordou, única e exclusivamente, os clássicos, as obras empoeiradas, por vezes esquecidas? As respostas, de fato, são tantas e tão distintas entre si que é melhor mesmo guardar os 20 minutos finais desta obra-prima em mente, estes 20 minutos finais de magia cinematográfica, amor, rancor, melancolia e tudo o mais. Estes 20 minutos, e também as 2 horas anteriores, de vida, pura vida capturada em película.

    Arrivederci, e até a próxima!

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