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    É possível não gostar dos clássicos? (Opinião)

    Quando A Lista de Schindler reestreia nos cinemas, é hora de refletir sobre a dificuldade de discordar da maioria.

    Em 1 de maio, um dos filmes mais famosos de Steven Spielberg retorna aos cinemas: A Lista de Schindler será exibido novamente, em cópia remasterizada, para comemorar vinte e cinco anos de lançamento. A oportunidade é ótima, não apenas para (re)descobrir a obra, mas também para diversificar o circuito dominado por blockbusters.

    Em dezembro de 1993, quando foi lançado, o drama sobre o genocídio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial recebeu críticas quase unanimemente positivas, arrecadando uma bilheteria de mais de US$300 milhões (para apenas US$22 milhões de custos de produção) e vencendo sete Oscars, incluindo a estatueta de melhor filme.

    Desde então, tem sido considerado um clássico absoluto, a ponto de ganhar a rara oportunidade de reestrear nos cinemas. Os críticos contemporâneos assistiram à nova cópia, e as críticas atuais foram mais uma vez positivas: "Um marco para o cinema moderno", afirma o Papo de Cinema, ou ainda "um filme definitivo sobre o Holocausto", para o Cineplayers. Nenhuma voz dissonante ousou dizer que a produção seria, por exemplo, apenas boa, ou ainda pouco memorável.

    Isso significa que o clássico é inquestionável? O filme clássico não envelhece, não pode ser interpretado de outra maneira pelas gerações seguintes? Para entender a nossa relação com os clássicos, primeiro é preciso compreender de que maneira uma produção conquista esse rótulo.

    Como nasce um clássico?

    Não existe uma resposta única a essa questão. Seria simples dizer que o rótulo surge "naturalmente", em decorrência da qualidade do filme - um filme bom se tornaria automaticamente um clássico. Mas não há nada natural no valor de uma obra, que sempre depende do contexto em que é inserida.

    A percepção de qualidade é construída socialmente: uma produção pode ser considerada ruim em sua época, mas ser redescoberta e aclamada mas tarde. Além disso, todo espectador deve se lembrar de diversos títulos muito bons, e aclamados durante seu lançamento mas que, no entanto, não foram relembrados ou referenciados pelas gerações posteriores.

    Um consenso sobre a noção de clássico diz respeito ao tempo. Por mais que os críticos queiram dizer que uma estreia é um "clássico instantâneo", ou outras frases de efeito equivalente, o clássico só é percebido como tal algum tempo depois de sua criação - este valor está diretamente associado à permanência do filme (ou qualquer outra obra de arte) no imaginário popular.

    Além disso, um clássico não precisa ser necessariamente percebido como bom. Alguns filmes clássicos, se analisados com os padrões contemporâneos (vide o roteiro de Grease - Nos Tempos da Brilhantina), talvez fossem considerados fracos, mas parecem imunes a julgamentos posteriores. Isso porque já criaram laços afetivos com o público, já se tornaram referências, símbolos pop.

    Deste modo, o rótulo "clássico" carrega um peso importante sobre a obra. Ninguém assiste a O Exorcista pela primeira vez em 2019 do mesmo modo que assistiria a um novo filme de terror que acaba de entrar em cartaz, por exemplo. Isso significa que a nossa percepção é condicionada pelo peso cultural do filme. 

    Ao mesmo tempo, a noção de clássico pode mudar: O Nascimento de uma Nação foi considerado um marco absoluto durante muitas décadas. Mas hoje, em função do distanciamento das novas gerações, diversos cinéfilos e espectadores minimizam a importância da obra em função de seu conteúdo racista (embora ainda reconheçam a importância da linguagem cinematográfica). 

    Inversamente, diversas produções da Nouvelle Vague francesa foram rechaçadas pelos críticos da época, até os veículos Cahiers du Cinéma e Positif reconhecerem o seu valor e reivindicarem a importância dos filmes. Mesmo Steven Spielberg foi considerado durante muito tempo apenas um diretor de blockbusters - um termo pejorativo em diversos meios intelectuais -, até grupos pontuais de teóricos resgatarem seus filmes como um trabalho autoral.

    Em outras palavras, embora a noção de clássico esteja associada à permanência, ela pode ser atribuída a uma obra ou retirada da mesma com o passar das décadas.

    Quem decide qual filme é clássico?

    Essa é uma questão fundamental. Se algum parente nosso disser que As Branquelas é um clássico absoluto do cinema, talvez a frase seja considerada apenas uma brincadeira. Se um crítico renomado disser a mesma coisa - por exemplo, o veterano Luiz Carlos Merten, do Estado de São Paulo -, muitas pessoas vão assistir às Branquelas de modo diferente.  

    Isso significa que nem todos os discursos possuem o mesmo grau de influência. Esta constatação, justa ou não, serve para determinar qual filme é bom, qual filme é "clássico", qual filme é uma "obra-prima" ou qualquer outro termo do gênero. O teórico Pierre Bourdieu chamava os verdadeiros influenciadores de "instâncias legitimadoras do poder", numa constatação de que tendemos a valorizar mais a fala de uma pessoa do que de outra. 

    O crítico não é o único legitimador da obra. Quando Martin Scorsese incluiu Regeneração (1915), de Raoul Walsh, na sua lista de preferidos de todos os tempos, as atenções se voltaram ao filme, pelo respeito que o círculo cinéfilo atribui ao diretor de Os Bons Companheiros.

    Mas a influência vai além: Barack Obama afirmou em 2008 que seu filme predileto era O Poderoso Chefão, que obviamente já era considerado um clássico, mas foi valorizado pelas palavras do ex-presidente norte-americano - assim como o presidente se valoriza, reciprocamente, pela escolha de um filme renomado. Caso Obama respondesse que seu filme preferido é Gente Grande, muitas pessoas olhariam para o político de modo diferente.

    Hoje em dia as redes sociais estão tomadas por "influenciadores digitais", chamados antigamente de youtubers, e talvez este seja o cerne da questão: a influência do discurso de uma pessoa sobre seu público. As mídias podem quantificar esse alcance em número de seguidores, mas nem sempre o poder é medido em número de likes e inscrições.

    Se Fernanda Montenegro dissesse que o maior clássico do cinema brasileiro é Vidas Secas, por exemplo, seu ponto de vista provavelmente teria maior peso social entre os intelectuais do que aquele de jovens com canais no YouTube.

    Como discordar de um clássico?

    A pergunta vale não apenas para o cinema, mas para a dificuldade de discordar de uma unanimidade em geral. Nos tempos polarizados e anti-intelectuais em que vivemos, muitas argumentações se resolvem no grito, ou seja, na radicalização do argumento.

    Se algum crítico dissesse que A Lista de Schindler é um bom filme, porém com aspectos fracos em determinadas cenas, a frase se perderia no mar de opiniões das redes sociais. No entanto, se este mesmo crítico disser que se trata do "pior filme de todo os tempos", as atenções se voltariam a ele - para amar ou discordar, comentar ou dar "likes". Vivemos a época da argumentação clickbait.

    Isso vale para as produções mais recentes também. Depois de uma resposta esmagadoramente positiva ao lançamento de La La Land - Cantando Estações, começaram a surgir algumas raras vozes dissonantes. O jornal francês Télérama não se limitou a apontar algumas falhas, preferindo taxar o filme americano de "insuportável".

    Na estreia recente de Vingadores: Ultimato, quase todos os veículos brasileiros destacaram os valores da produção, até a Folha de São Paulo dizer que se tratava do "filme mais chato de 2019". Independentemente da qualidade da argumentação, o texto despertou para si uma atenção superior ao da maioria das críticas, por se distinguir da maioria.

    Aplicado ao clássico, o peso é ainda maior: não se discorda apenas do consenso, mas de um valor cultural adquirido ao longo das décadas. Isso significa que a obra "sobreviveu" aos possíveis ataques e ao esquecimento, tão comuns à grande maioria dos filmes, o que a tornaria especial. O clássico seria, por esta perspectiva, uma questão de mérito.

    Talvez por isso, quando o New York Times publicou uma das raras críticas negativas sobre A Lista de Schindler, ele não se contentou em dizer que era fraco, mas foi além, dizendo que se trata de um "parque temático disfarçado de dissertação de mestrado".

    A ira do crítico Luke Thompson se torna muito mais evidente do que a argumentação utilizada para desvalorizar o filme. No final, o valor deste texto é retórico: pouco importa o raciocínio fornecido para discordar do consenso. O simples fato de ter desviado da maioria chama a atenção e constitui um posicionamento em si.

    Para o espectador comum, que não possui o peso cultural de um crítico ou uma celebridade, a tarefa de ser ouvido é mais difícil. Muitas pessoas se calam diante da maioria. "Não vale apenas brigar", pensam, e talvez, de fato, não seja necessário convencer ninguém sobre uma opinião, seja ela igual ou diferente da média.

    O clássico, afinal, não é apenas um selo positivo, mas também um símbolo autoritário. Como toda autoridade, ele restringe liberdades - e difícil rejeitá-lo, pensar diferente, sem se sentir equivocado. Não é incomum que um espectador médio sinta que sua opinião está "errada", ou que ele "não entendeu o filme", quando a sua interpretação diverge da maioria.

    O clássico carrega um valor positivo, mas também uma arrogância decorrente de sua posição hierárquica privilegiada. O rótulo é mais complexo do que parece à primeira vista.

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