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    "Os diretores estão perdendo o monopólio das imagens, e isso é incrível", afirmam diretores de Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos (Exclusivo)

    Uma conversa com Renée Nader Messora e João Salaviza sobre o belo filme premiado em Cannes.

    Está em cartaz nos cinemas o único longa-metragem brasileiro premiado no último Festival de Cannes: Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos, de Renée Nader Messora e João Salaviza.

    A ficção se passa na aldeia indígena da Pedra Branca, onde o jovem Ihjãc acata o pedido do falecido pai para organizar uma cerimônia para o final do luto, de acordo com a tradição dos Krahô. Aos poucos, ele teme estar virando pajé, e busca auxílio tanto nas curas locais quanto nos recursos da cidade mais próxima.

    A história inclui registros belíssimos de festas e rituais, ao mesmo tempo em que analisa os possíveis pontos de contato entre as culturas indígenas e as populações brancas no Brasil. O AdoroCinema conversou com a dupla de diretores sobre o projeto:

    Divulgação

    Como vocês encontraram os personagens do filme?

    Renée Nader Messora: Em 2009, eu filmei um pequeno registro de festa em uma aldeia. Conheci o Felipe, antropólogo que dava aulas na escola indígena, e que tinha muita vontade de trazer o audiovisual como ferramenta para registrar as festas, as cantigas, os mitos, as histórias dos velhos. Voltei para São Paulo e escrevi com o Felipe um projeto de oficina em aldeias. A partir dessa primeira oficina, definiu-se que aquele era o grupo de cinegrafistas com quem queriam continuar trabalhando. A própria comunidade passou a escrever projetos através de um centro cultural, e me convidavam para fazer essas oficinas. Esse trabalho foi ganhando diferentes formas no decorrer dos anos, mas continua até hoje.

    Na verdade, a ideia era contribuir com algumas coisas que estavam acontecendo ali, mas não existia a ideia de fazer um filme nesse primeiro momento. A gente se aproximou muito de uma história que aconteceu com um menino na aldeia que passou por um processo bem parecido com o do Ihjãc. Ele fugiu da aldeia porque pensava que morreria se ficasse lá, porque sofreu um feitiço. Ele morou durante um ano em Itacajá, com a esposa e o filho. Aquilo instigou a vontade de fazer um filme e pensar como esses meninos estão resolvendo questões pertinentes àquele universo.

    Enfim, a ideia era pensar a relação com os espíritos e com o mundo imaterial, todos esses seres que habitam a terra indígena e como estes jovens estão lidando com o olhar para a cidade, para as novas tecnologias que estão chegando. A partir de 2014, a gente disse: "Vamos fazer um filme". As coisas foram ganhando forma com o passar do tempo, com os encontros, com as conversas.

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    Sempre pretenderam fazer uma ficção? Muitos registros de índios no cinema brasileiro recente são documentários.

    Renée Nader Messora: Sim, porque a gente queria que a história fizesse sentido para a gente, mas que não fosse longe do que eles acreditam como possibilidade. É óbvio que eu não ia pedir para o Ihjãc fingir que era o marido de outra pessoa que não fosse da Kôtô, por exemplo. O filme tem uma raiz muito funda na realidade porque essas relações todas são verdadeiras: a casa do Ihjãc é realmente a casa dele. A gente não podia perder esse aspecto real, que era muito importante para eles. Seria uma grande confusão se a gente realmente quisesse trabalhar com uma ficção clássica, onde eu pego a menina que eu mais gosto, o menino que eu mais gosto, uma criança bonitinha e crio a minha família.

    João Salaviza: Era importante que eles se sentissem confortáveis e respeitados naquelas imagens. De alguma forma, a proposta de ficção acaba por ser permanentemente posta em causa durante a feitura do filme. Isso acaba por enriquecer o filme e obrigar-nos a encontrar soluções para sequências muito diversas. A proposta era dizer que aquele mundo não é um mundo sobrenatural, está em um plano de realidade contínuo. As sequências comemorativas de festas e rituais não foram produzidas para o filme, e sim porque havia uma necessidade da aldeia de fazer aquelas festas. Depois é montagem: a presença do Ihjãc faz com que estes momentos sejam incorporados e se relacionem com a ficção. 

    Renée Nader Messora: Além disso, tinha a nossa relação aquelas pessoas: era preciso pensar não apenas o que a gente queria filmar, mas como iria filmar para que eles concordassem, entendessem e fosse bom para todo mundo. Essas ideias vão moldando o filme, de certa forma, além das limitações de não ter uma equipe técnica gigante e as limitações físicas mesmo, em determinadas sequências. 

    João Salaviza: A gente filmou mais ou menos na cronologia do filme, fomos montando enquanto filmávamos. Mesmo assim, o Ihjãc rapidamente entendeu quando viu a primeira sequência do filme, alinhada, montada, como todos aqueles fragmentos se relacionavam e construíam sentido. Mas para várias pessoas ali, cada cena tinha um valor autônomo.   

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    Para os índios, qual era o valor principal desse projeto? Eles queriam que seus costumes ficassem registrados como documento? Que os brancos conhecessem uma cultura diferente? Que o projeto servisse de pressão política? 

    João Salaviza: O Ihjãc nos disse que, no começo dos anos 1980, aqueles povos eram muito mais isolados, com menos contato com o entorno do que hoje em 2019. É claro que havia situações extremas de conflitos com latifundiários, doenças etc. Mas quando nos pediam para filmar, o que os povos queriam mostrar eram aspectos da sua própria produção cultural, ao invés de marcar o contraste com o branco ou as questões de luta política.

    Nosso filme não é ativista, nem se inscreve nessa tradição do cinema brasileiro, que tem filmes incríveis. Martírio (2016), por exemplo, estabelece uma aliança estética, poética e também muito política. A gente visava chegar à intimidade e à subjetividade de uma figura, ou duas. Neste sentido, é um filme sobre os Krahô que não tem a intenção de entender a sociedade como um todo. No começo, quando a Reneé filmou a festa de fim de luto, um grupo pediu: “Registrem essa festa porque vai ser bonita, enorme, com a presença de centenas de pessoas de outras aldeias também”.

    Hoje, tendo o filme pronto, percebo que criamos inicialmente um pacto de confiança. Não havia uma expectativa muito grande na aldeia sobre o que seria o filme. Tanto que, durante os 9 meses de filmagem, como não havia uma equipe de cinema ali presente, a produção do filme passava quase despercebida. As pessoas não nos perguntavam muito sobre o filme, nós íamos filmando com o Ihjãc um dia sim, no outro não filmávamos, íamos para Itacajá pensar um pouco e voltávamos. Então, a produção do filme não se impôs sobre o cotidiano.

    Mesmo assim, foram feitas várias reuniões. Nada em Pedra Branca ou em alguma aldeia Krahô pode avançar sem uma reunião, ou várias reuniões. O filme foi discutido com muita gente, e o Ihjãc disse: “Precisamos conversar com os espíritos, com os nossos antepassados para ver se há algum risco, se há alguma diplomacia com os mortos que está a ser posta em causa”. Fomos conversar com o pajé. Ele disse: “Não se preocupem porque os espíritos estão a ver que isso é uma brincadeira”. Agora, mais tarde, quando o filme ficou pronto, comecei a ver que, principalmente para os mais velhos, o filme foi percebido como uma aliança possível com o mundo dos brancos. São os aspectos que eles consideram mais belos, mais bonitos e mais complexos da sua cultura para serem transportados mundo afora. 

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    Pela temática e pela estrutura de produção, consideram Chuva é Cantoria na Aldeira dos Mortos como um filme de resistência?

    Renée Nader Messora: Eu não considero que o filme levante uma bandeira tão clara de militância. Mas ele calhou de estrear no pior dos momentos. A estreia de Chuva agora permite ampliar o diálogo sobre o que está acontecendo lá fora. Muitas pessoas com quem eu converso, no eixo Rio-São Paulo, não percebem a realidade de um Brasil mais amplo. Este Brasil daqui [de São Paulo] não é representativo do país como um todo. 

    João Salaviza: O milagre desse filme, para nós, é ter feito este percurso surpreendente. Em um ano, ter conquistado um prêmio em Cannes ao lado de filmes com orçamentos 100 vezes maiores, com Benicio del Toro no júri. Depois ele foi para 60 festivais, e vai estrear na França, em Portugal, Argentina, Brasil e mais países. Então, de alguma forma, as coisas estão todas relacionadas: nós temos que radicalizar a luta política. No cinema é um pouco a mesma coisa. Este não é um filme radical, nem um filme hermético, com aquilo que nós normalmente associamos a uma radicalidade estética. Mas se nós pensarmos a forma como esse filme foi feito, a forma com que nós tivemos que driblar os editais para conseguir financiar o filme, como nós conseguimos filmar em 16mm, sem equipe - mesmo que com a colaboração de toda uma aldeia -, então foi sim radical. 

    Não podemos fazer compromissos na hora de filmar, do mesmo jeito que não podemos fazer compromissos políticos. Hoje a radicalidade é muito diferente daquela proposta por Glauber Rocha ou Rogério Sganzerla. Fazer cinema hoje não é o mesmo que fazer nos anos 1960. Infelizmente, acho que muitos realizadores têm um trauma que ainda não conseguiram superar que é o fato de termos perdido o monopólio das imagens. Mas isso é incrível. Existe o lado nocivo da “youtubização” do mundo, mas mesmo tempo, você pode ver um índio Krahô fazer o seu jornal local, jogar no Youtube e no mesmo dia um Kayapó do Xingu pode assistir ao registro. 

    Renée Nader Messora: Mas a imagem da resistência mesmo é desse cinema indígena que está emergindo agora no Brasil, agora há alguns anos já e que tem essa potência notável. Ele carrega uma ruptura total na forma, na estética, no conteúdo, em tudo. Nesta ruptura se encontra também uma militância de apelo muito forte.

    João Salaviza: Isso remete à própria questão autoral. Nós somos amigos dessas pessoas que estão no filme, não são apenas figuras ou personagens de cinema. Mesmo sendo dirigido por João Salaviza e Renée Nader Messora, os indígenas não pensam a produção artística dessa forma, é tudo coletivo. A autoria muda se nós pensarmos também sobre as novidades na luta política que vêm desses lugares. Ontem, conversando com uma menina indígena, ela disse: “Olha, essa coisa de protestar com sindicato, com partido, é uma coisa do século XIX, da Revolução Industrial, das fábricas. A gente não pensa nesses termos. Hoje a Sônia Guajajara tem protagonismo, mas no dia em que a Sônia sair, entra outro. Em outro tempo foi o Krenak, mas a gente se organiza de uma forma muito mais horizontal, muito mais universal”.

    Nós vemos a mesma forma de pensar vindo das favelas, das comunidades LGBT, dos indígenas, dos imigrantes. Isso nos obriga a conceber novas formas de fazer política, do mesmo jeito que as câmeras nas mãos e os novos protagonistas vão adentrar a estética hegemônica do cinema. Os filmes feitos por indígenas, os filmes feitos por negros da favela, da periferia, finalmente falam: “Nós não somos objetos das suas cenas, nós queremos ser donos das nossas imagens”.

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