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    "Se eu mostrasse as coisas como elas são, Elegia de um Crime seria insuportável de ver", explica Cristiano Burlan (Exclusivo)

    O epílogo de uma tragédia familiar.

    Humberto Araújo / Festival de Brasília

    O diretor Cristiano Burlan já expôs algumas de suas feridas mais dolorosas no cinema. Em Construção (2006), faz uma alusão à morte do pai. Em Mataram meu Irmão (2013), expõe o assassinato a tiros de Rafael Burlan. Em 2019, a "trilogia do luto" se encerra com Elegia de um Crime, documentário sobre a morte da mãe, Isabel Burlan, assassinada pelo namorado. 

    O projeto não apenas reconstitui o crime e presta homenagem à falecida mãe como relembra o fato de o assassino ainda estar livre e impune. Burlan cogita então usar a formação como militar, pegar uma arma e acertar as contas com o responsável.

    O AdoroCinema conversou com Cristiano sobre este projeto tão controverso:

    Você sempre quis se colocar como personagem?

    Cristiano Burlan: Não, para mim foi muito difícil. Quando eu lancei Mataram Meu Irmão, em 2013, o Eduardo Escorel me disse: “O filme teria sido muito mais potente se você não tivesse se acovardado um pouco” [por não aparecer nas imagens]. Na hora achei estranho ele falar isso para mim. Pensei em Santiago e Cabra Marcado para Morrer, que ele tinha montado. Depois de um tempo, quando começou o processo deste novo filme, percebi que talvez ele tivesse razão, porque eu exponho meus parentes, e seria meio covarde se eu não me colocasse na mesma relação. Então tomei essa decisão, mas é claro que não foi fácil.

    Eu fui ator até os dezoito anos, mas aqui é um documentário, e estar diante de uma câmera é apavorante. Eu tinha que estar presente, até porque isso facilitou a relação com os personagens de certa maneira. Na hora da feitura das cenas, o fato de eu estar diante da câmera modificou a dinâmica, porque filmar uma pessoa, seja em documentário ou ficção, não é uma coisa natural.

    Divulgação

    Você expõe a si mesmo e aos familiares de maneira franca. Tinha medo de ferir a privacidade deles?

    Cristiano Burlan: Claro que esses julgamentos éticos e morais permeiam qualquer trabalho, no documentário principalmente. No caso, é uma situação que faz parte da minha história. Esse tipo de julgamento tem mais valor na montagem, porque a gente nunca sabe se tem o distanciamento necessário. Cito, por exemplo, a cena bem específica onde minha mãe aparece morta. Isso está na internet até hoje.

    O diretor de montagem achava importante eu mostrar aquilo. Depois, a gente fez laboratório com uma espanhola chamada Marta, que nos ajudou a pensar bem sobre o projeto. Ela disse assim: “Essa é uma das cenas mais violentas que eu já vi. Se você usar isso no filme, eu volto aqui e te mato”. A cena está no filme, mas eu não a mostro, ela é usada como dispositivo para a minha relação com a jornalista. A decisão sobre o que pode ser mostrado é um pensamento ético que permeia todo o trabalho do filme.

    O filme é munido por um desejo simbólico de reparação, justiça, ou mesmo vingança?

    Cristiano Burlan: Eu diria que existe um desejo de justiça, mesmo que ela não exista. Existe um espelhamento também. É horrível, a gente sempre fala do cinema do “eu”, e quando é um documentário na primeira pessoa, o “eu” chega a ser falocêntrico. De maneira bem simplista você pode pensar: “É um cara que ganhou prêmios expondo os parentes assassinados”, mas não é isso. Se esses filmes se justificam, é o espectador que tem que dizer.

    Isso sai do meu caso específico, do privado, e vai para o público e para o geral. Em Mataram meu Irmão, por exemplo, eu estou falando da violência na periferia das grandes cidades brasileiras. É um filme muito forte, até hoje quando ele passa, as pessoas me escrevem. No filme da minha mãe isso tem acontecido também, porque a história da violência contra a mulher sempre existiu no Brasil. Mas de um tempo pra cá os números aparecem. Antes, matavam mulher, davam porrada e isso não não aparecia na televisão. É claro que o filme é sobre o feminicídio, mas não é só sobre isso. Não seria honesto da minha parte usar isso como divulgação do filme, ainda mais porque o tema é muito atual, mas é claro que ele adquire uma certa atualidade assombrosa.

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    Para você, qual era importância de pegar em armas e partir em busca do assassino? 

    Cristiano Burlan: Essa cena traz vários questionamentos, muita gente acha que eu não deveria ter colocado. Primeiro, eu fui soldado na França, eu servi a legião estrangeira, tenho treinamento militar. Cometi alguns delitos antes dos dezoito anos, tive contato com a criminalidade. Eu sempre tive contato com arma desde pequeno, mas eu odeio arma, fico nervoso quando seguro uma nas mãos. Para mim é um objeto muito estranho, violento. De uma certa maneira, tem a ver com a minha frase final quando eu falo que o meu crime é filmar, não matar as pessoas. A princípio, poderia parecer um filme de vingança, mas é um filme de justiça, e uma justiça que eu não consigo executar também.

    Eu lido nesse filme com uma materialidade que eu nunca tinha lidado na minha vida, já não é mais sobre cinema. É uma pulsão de vida e morte muito forte. François Truffaut até fala em A Noite Americana: “No começo das filmagens você quer conquistar o mundo, do meio para frente você só quer que o filme termine”. Esse filme, pela primeira vez na minha vida, eu só queria terminar, só queria lançar logo, passar logo, mostrar logo. Claro que eu vou ter que pensar e conviver com ele para o resto da minha vida, mas eu paguei um preço muito alto para fazer e eu tenho consciência concreta disso.

    O documentário corre o risco de se ficcionalizar quando você cogita matar o assassino da sua mãe.

    Cristiano Burlan: Se você pensar nos grandes documentários realizados nos últimos tempos no Brasil existe uma mistura natural entre documentário e ficção. Na verdade, eu parei de pensar nisso há muito tempo, o que me interessa é filmar as coisas do mundo. Claro, existe um dispositivo ali. Mas na minha percepção, quando eu estava fazendo e quando eu montei, aquilo ali tinha uma organicidade. Nem tudo que está no filme aparece da maneira que a gente quer, existem as obsessões de quem está fazendo um filme também.

    Eu tenho problemas com essa cena, mas se eu fosse montar, colocaria ela de novo. Essa é a nossa teimosia: você não sabe por quê está ali, mas um filme não precisa ser muito interessante o tempo todo, ele pode ter momentos ruins. A questão é quando você decide pôr um momento ruim que você sabe que é ruim e o problema dos filmes é que os caras não sabem que aqueles são os momentos ruins. Agora, sobre realidade, é um conceito muito estranho para mim porque se eu mostrasse as coisas como elas realmente são, esse filme seria insuportável de ser visto. Então, tem um filtro.

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    Pode-se debater se o cinema tem a capacidade de "mostrar as coisas como elas são"...

    Cristiano Burlan: Exato. Primeiro, ninguém é natural diante de uma câmera. Uma câmera é um pau gigante, eu coloco um pau gigante na sua cara e falo: “Aja naturalmente para mim, neném”. Sempre tem uma encenação de si mesmo. A lente no cinema não é uma questão técnica, ela é fisiológica, semântica, política, ideológica, social, antropológica...

    As pessoas podem gostar ou não do filme, mas eu consigo ir para casa dormir porque quem assiste aos meus filmes percebe uma honestidade ali. Eu posso me equivocar, mas quando eu erro é porque eu tentei. Isso para mim é o mais importante: o respeito pelo trabalho, pela honestidade. Tem dias que eu acordo e falo: “Vou tentar ser um cineasta bom, usar meu conhecimento de professor e cinéfilo no trabalho”, mas eu não consigo, eu não tenho essa relação cerebral com o cinema. Para mim é um processo orgânico, eu filmo como eu respiro, como eu acordo e penso.

    Por mais que você pense em um trabalho, você faz uma decupagem, você analisa, você idealiza o projeto, você fala com as pessoas, divide as ideias... Quando você liga a câmera pela primeira vez, se você está escravizado por esse pensamento a priori, não funciona. Pode funcionar para outros, mas eu não consigo agir assim. Cada filme, para mim, tem que ser uma experiência nova, o que não significa que é melhor ou pior. 

    Você tinha medo da repercussão desse filme para você e para as pessoas retratadas?

    Cristiano Burlan: Sempre tenho. Eu fico muito inseguro, porque é uma exposição muito grande. Expor a si mesmo é uma coisa, mas expor os outros, no caso, os meus parentes, é um preço muito alto a pagar. Por exemplo, eu mostro a foto do assassino, que é negro. Eu posso reforçar o estigma do criminoso negro, entende? Tenho muitos amigos nos movimentos negros e sabia que isso seria um problema para essas pessoas, mas eu não poderia me trair porque senão eu estaria levantando bandeiras ideológicas, que são justíssimas para outras pessoas, mas eu não posso prostituir o meu cinema a serviço disso. Eu tenho que ser honesto com as coisas que eu criei.

    Eu tenho sorte de ter feito muitos filmes. Independente da qualidade, isso me tornou um cineasta com mais consciência do ofício. Eu me dou o direito de me equivocar porque meus filmes são pequenos. Acabei de fazer um filme muito pequeno, e agora vou fazer um longa com grana, já tenho o dinheiro. Vai ser o meu primeiro grande projeto, minha primeira ficção com recursos. Então os produtores executivos falaram: “Mas você vai continuar fazendo filmes pequenos, experimental, esses que ninguém vai ver?”. 

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    Como você descreveria a trilogia do luto enquanto projeto único?

    Cristiano Burlan: Eu tenho uma tetralogia também, com quatro filmes em preto e branco, filmes urgentes, feitos em seis dias, com poucos recursos. Mas eu não uso isso como sinopse do projeto. Essa tetralogia foi importante porque eram filmes que me fizeram esquecer um pouco essa realidade dura dessa trilogia e que se relaciona com minha grande paixão por São Paulo. Eu tenho uma relação de amor e ódio com essa cidade que me deu e me tirou muito. Tenho certa obsessão por filmá-la, e acho que ainda não consegui filmá-la da maneira como eu gostaria.

    Sobre a trilogia... Eu não sou um artista plástico para fazer um tríptico, com uma concepção a priori da obra toda. Enquanto Mataram meu Irmão é um título horrível, pesado, o Elegia tem certa poesia para mim. É a elegia, a reminiscência e afins. É como eu lembro da minha mãe… Agora, essa trilogia poderia ser uma tetralogia, que é o quarto filme que eu espero que não aconteça, caso o meu irmão morra assassinado na cadeia. É a última ponta disso tudo. Espero que eu morra antes. Esse filme eu não vou ter coragem de fazer, porque meu último grau de sanidade é esse irmão. Ele é o último resquício de violência da minha família.

    Os três filmes, para mim, não são sobre a morte. A morte acaba sendo um meio, e posso usar como um elemento cinematográfico e estético. É a estética do passado, da reconstrução da memória. O filme nasce e morre a todo instante quando você projeta. Eu sempre quero que meus filmes sejam nostálgicos, que as pessoas tenham o mesmo prazer ao assistir que eu tive quando fiz. O grande elemento quando você vai fazer um filme, independente de ser documentário ou ficção, é criação de atmosfera e isso você não tem certeza de que vai conseguir, independente da sua experiência, dinheiro, produção.

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