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    Breve Historia del Planeta Verde: "Somos todos um pouco alienígenas", afirmam diretor e atriz de comédia LGBT premiada em Berlim (Exclusivo)

    Os simpáticos Santiago Loza e Romina Escobar falam sobre a produção argentina-brasileira.

    No último Festival de Berlim, uma das maiores surpresas para o público foi a comédia dramática Breve Historia del Planeta Verde, dirigida por Santiago Loza.

    A trama inusitada apresenta uma mulher transexual (Romina Escobar) que reúne seus amigos quando descobre que a falecida avó passou os últimos dias de sua vida em companhia de um alienígena de cor roxa. O grupo embarca numa jornada para deixar a criatura no local onde foi encontrada. Leia a nossa crítica.

    O AdoroCinema certamente não foi o único a apreciar a coprodução entre Argentina, Brasil, Espanha e Alemanha: o projeto venceu o Teddy de melhor ficção e o troféu Männer Magazine em Berlim.

    Nós conversamos com Loza e a atriz Romina Escobar sobre o inusitado filme:

    Divulgação

    Lendo a sinopse sobre personagens LGBT viajando com um alienígena, poderíamos esperar algo trash, satírico. Mas não é o caso. De onde veio a ideia?

    Santiago Loza: A ideia partiu de diferentes caminhos, um pouco dos anos 1980, um pouco do vínculo da amizade e, também, a vontade de trabalhar a questão trans e sua evolução. Queria trabalhar com a ideia de três personagens que eram amigos, então veio a ideia de mostrar uma trans, uma personagem que nenhuma outra mulher poderia fazer a não ser uma atriz transexual. Enquanto isso, eu tive a ideia de viagem e da homenagem ao cinema dos anos 1980, ao cinema pop, atravessado pelo cinema de contemplação e o cinema autoral. Trabalhei um pouco com a premissa de pessoas ofendidas, aquilo que hoje chamamos de bullying.

    Como foi moldada a personagem Tania?

    Romina Escobar: A verdade é que fui trabalhando com Santiago à medida que fomos gravando o filme. Ele é um diretor te ajuda muito a se podar, encontrar a magia da cena. Ele sempre me dizia para onde ir, e às vezes controlava a atuação, cortava alguns exageros. Assim as relações com os companheiros ficam mais naturais, cena após cena. Acredito que ficou um trabalho maravilhoso.

    Santiago Loza: No caso da Romina Escobar, do Luis Soda e da Paula Grinszpan, foi um processo muito longo. Eu ficava conversando com eles, discutindo os personagens. A sorte é que eles já se conheciam antes, e pude aproveitar elementos da personalidade de cada um.

    Por que era importante ter três personagens com sexualidade e gêneros diferentes? Como decidiu ter um homem homossexual, uma mulher cis e uma mulher trans?

    Santiago Loza: Isso foi mais intuitivo. Agora eu percebo que eles três têm diferentes sexualidades e, mesmo sabendo que agora existem muitas sexualidades, são gêneros distintos, atravessados por diferenças fundamentais. Mesmo assim, todos foram profundamente feridos: é a ofensa, é esta ferida que marca a todos da mesma maneira. Alguma coisa no filme planta essa aliança, a união pelo fato de os personagens terem um passado em comum.

    Romina Escobar: É como se nós pudéssemos nos lamentar mas depois tirar o melhor disso, que é o que acontece no filme. Eles levam golpes do passado e depois superam essa questão, sejam heterossexuais gays ou trans.

    Muitos filmes sobre personagens transexuais são focados no corpo, mas esta não é uma questão no seu filme.

    Santiago Loza: Para mim, o elemento trans no filme é algo a mais, o personagem de Romina está em nível de igualdade com os outros personagens. Para mim, como diretor, sinto como se estivesse com eles, filmo na altura do olhar. Não me coloco acima deles, e assim construímos o filme como companheiros. O filme foi elaborado coletivamente, de uma maneira entusiasta. Fomos encontrando a construção das imagens juntos, ao longo do tempo. Isso me veio intuitivamente, por uma questão de respeito e confiança na construção coletiva.

    Romina Escobar: Essa visão do corpo frisa a maneira como as pessoas trans costumam ser exploradas. Esse filme não passa por esse ângulo. O foco é a perspectiva amorosa, a busca de empatia pelo outro. O corpo de Tania é marcado por diversos questionamentos, assim como o corpo de todo mundo, mas o filme de vira para outros elementos: o tema principal do filme é a aliança.

    Santiago Loza: Temos vários corpos diferentes, até um corpo de outro mundo! O corpo alienígena carrega essa estranheza em relação ao mundo.

    O alienígena serve como metáfora para estes personagens LGBT deslocados da sociedade?

    Santiago Loza: Com certeza. Esse ser que está fora do mundo e se sente só e frágil deve ir a um lugar para que ele possa descansar. É uma metáfora muito simples, de que somos todos um pouco aliens. Por isso não existe surpresa quando encontram o alien. Todos foram um pouco retirados do real. O filme é uma grande fantasia, parece que tudo se passa num sonho, numa imaginação. Assim como nos sonhos, não há surpresa, durante o sonho você só aceita os acontecimentos sem nenhuma surpresa.

    Considera o filme uma ficção científica? De que modo construiu o aspecto físico do alienígena?

    Santiago Loza: Eu acredito que existem elementos de ficção e elementos de fantasia, mas não considero que seja completamente um filme de ficção científica. Para construir o alienígena, foi um pouco complicado. Fomos buscando características que mostrassem fragilidade e uma certa bondade. Certamente, queríamos um alienígena queer e unisex. Fomos trabalhando até chegar no corpo físico, porque o resultado não é digital, é físico mesmo.

    Romina Escobar: É mais fácil trabalhar com o alienígena físico, real. Às vezes ficávamos tão apegados a ele que brincávamos: "Não se move!".

    Santiago Loza: Ele é um pouco robótico. Para mim, o filme assume o ridículo. E pensar que fomos a vários lugares de gravação com este boneco! Mas eu sabia que, ao mesmo tempo, seria um filme melancólico porque tem a ver com partes feridas de todos. Sabia que a melancolia se equilibraria com fantasia e humor, a ideia de uma primeira viagem, de um encontro e também do fracasso. Eu fui encontrando com o elenco este tom. Mas a gente sabia que misturaria o terror com o humor.

    Você trabalhou com referências específicas para o universo de gênero?

    Santiago Loza: A referência vem de filmes americanos, o cinema que eu via quando criança, por ser um pouco mais velho. Era um cinema de gênero com toque autoral. Parti do conceito de um alienígena sul-americano num país pobre: como criar fantasia em um lugar onde a fantasia não é possível? Então teve a questão do plano sequência que me apareceu. Isso me possibilitava algo mais autoral, onde a câmera era um personagem a mais que acompanhava e guiava essa viagem. Fica mais natural e traz uma assinatura também.

    Sobre a representatividade transexual, acredita que o cinema tenha evoluído?

    Romina Escobar: Sim, acho muito importante porque com o tempo tudo transcende, tudo passa. É muito importante que tenhamos o lugar que merecemos. Antigamente a gente via ou homens que se transvestiam ou mulheres se vestiam com características mais masculinas. Enquanto muitas mulheres como eu, que estudamos, que somos boas atrizes, não éramos reconhecidas. Estamos num bom caminho.

    Santiago Loza: Além disso, existiu esse momento em que o gay ou a trans tinham apenas o papel engraçado, de palhaço da história. Não existiam outro foco para personagens LGBT, mas estas pessoas passam por dores e alegrias assim como todos os outros.

    Romina Escobar: Eram normalmente personagens secundários, clichês, mas estamos saindo disso. Há uma grande quantidade de pessoas trans que são advogadas, por exemplo, mas não se fala delas. Os indivíduos trans têm que ser inseridos nos filmes com normalidade, não somente em filme sobre trans mas, sobretudo, nas ficções, nos filmes policiais. A transexualidade carrega em si a narrativa de algo que muda e o mundo está em uma fase horrível, precisa mudar.

    Qual é a importância de um festival como Berlim para a carreira do filme?

    Santiago Loza: É um festival muito amoroso com a questão LGBT, sempre foi um sonho estar aqui. É um festival importante como Cannes e Veneza, mas feito por pessoas da cidade. Ou seja, é gente do cinema junto de gente da cidade, que prestigia o filme logo depois que sai do festival. De todas as chances possíveis, estar em Berlim é a mais linda e colorida. Foi um trabalho emocionalmente muito intenso: fizemos esse filme com poucos recursos e todos fizeram muito esforço, porque amávamos muito esse projeto.

    Romina Escobar: Enquanto estávamos rodando o filme, me lembro a maneira como um amigo que operava a câmera elogiou o meu trabalho. Ele não precisava ter dito isso, sabe? Essas coisas tornaram muito emotivo e bonito fazer o filme. Criou-se um vínculo, uma aliança.

    Qual é a importância de exibir este filme agora, em 2019?

    Santiago Loza: Agora há um sentimento de volta do ódio no nosso país. Mas esse filme aposta no amor, ele aponta a necessidade de um espaço para a humanidade.

    Romina Escobar: Concordo. Estamos passando por uma fase de mortes, ódio, pelos menos na Argentina. Pessoas são mortas o tempo todo por motivos banais, e as pessoas trans são assassinadas sempre. Eu faço parte de uma rede no Facebook onde compartilhamos informações o tempo todo. Na Argentina, uma irmã trabalha com pessoas trans, a igreja também ajuda a lidar com os relatos de crimes violentos, às vezes cometidos por policiais e pessoas de poder. À noite nós somos bonitas, mas de dia o que somos? A realidade não anda nada pacífica.

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