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    Tirando o Mofo: A Concha e o Clérigo, um marco da visão feminina no cinema

    No mês da mulher, este marco na luta pela igualdade, resgatamos a obra-prima da francesa Germaine Dullac.

    "Este filme é tão enigmático que é quase sem sentido. E se há um sentido, este é sem dúvida censurável". Foi com esta justificativa que o Comitê Britânico de Censura Cinematográfica (hoje Comitê Britânico de Classificação Cinematográfica, o BBFC) baniu o média-metragem A Concha e o Clérigo, um filme de 1927, de apenas 40 minutos, que causou comoção generalizada durante seu lançamento, desagradando a gregos e troianos. Por um lado, os ideais subversivos da oblíqua e difícil narrativa, que atentam contra a estrutura masculina da sociedade e a santidade dos clérigos católicos, confundiram quase todos os espectadores. Por outro, o roteiro, baseado na obra homônima do poeta, ator e dramaturgo Antonin Artaud, irritou o público e o autor, que xingou copiosamente a cineasta Germaine Dulac durante a estreia do média.

    Com tantas polêmicas ao seu redor e tal potencial nato para embaralhar a nossa cabeça, A Concha e o Clérigo, ainda assim, ergue-se por si mesmo. Mais do que gerar interesse a partir das controvérsias que gerou ao incomodar diretamente as instituições hegemônicas da sociedade europeia da época, o média de Dulac é relevante, talvez hoje mais do que nunca, justamente por causa de sua relutância em ceder aos conformismos, esquemas e paradigmas, sejam eles cinematográficos, culturais e/ou sociais. Afinal de contas, por trás da história do padre que desenvolve uma paixão obsessiva e violentamente sexual pela mulher de um general, há um marco: há, enfim, o primeiro filme surrealista — antecipando, em dois anos, o clássico Um Cão Andaluz — e uma importante conquista para as mulheres na sétima arte.

    Radical em sua crítica à sexualidade masculina e aos efeitos nocivos e tóxicos produzidos pelo "male gaze", ou a perspectiva masculina que objetifica a figura feminina, Dulac questiona este olhar como forma de realizar sua desconstrução — olhar este que, aliás, domina o cinema e a mídia desde os seus primórdios, mas que felizmente vem sendo abalado pela ação de artistas (frequentemente mulheres), que invertem e reconfiguram o tratamento dado às personagens femininas na ficção. Além disso, a realizadora francesa também caminha na contramão dos antagonistas da época: se em Hollywood eram os negros e os chineses — além de outras minorias — os responsáveis por representar uma ameaça aos protagonistas, a diretora europeia traz um padre como a instância perigosa da trama, o grande vilão.

    Com um olhar ensandecido e febril estampado em seu rosto — cortesia, é claro, da interpretação intensa de Allin, que à época foi considerada "medíocre" pelos críticos —, e completamente alheio à realidade, o clérigo percorre as ruas de Paris e os campos franceses seguindo o rastro da mulher do general, determinado a obtê-la. Trabalhando quase que com um road movie perverso e trágico por causa da longa perseguição, que toma conta da maior parte da trama, Dulac concretiza, com base no roteiro de Artaud, um passeio pelo delirante e brutal desejo masculino, onde o objeto deste desejo — a mulher — faz convergir as pulsões do sexo e da morte em uma narrativa que mais se assemelha a um quebra-cabeças do mais difícil nível do que qualquer outra coisa.

    Egressa da escola impressionista do cinema, que revelou ao mundo outros realizadores consagrados como Abel Gance (Napoleão) e Jean Epstein, a diretora francesa embarcou no surrealismo com o compromisso de retratar a realidade de um ponto de vista feminino, algo quase inédito na primeira fase da sétima arte, mas sem necessariamente corresponder à mesma, representando-a e/ou reproduzindo-a diretamente. Nestes termos, A Concha e o Clérigo é exatamente como sua cartela inicial o apresenta: "Não um sonho, mas é o mundo das imagens ele próprio que leva a mente ao lugar onde ela jamais teria consentido ir, o mecanismo que está ao alcance de todos". Em outras palavras, é uma combinação entre o concreto e o tratamento poético da realidade em si.

    Também por isso que é praticamente impossível explicar o enredo deste média de uma maneira corriqueira: é, enfim, um daqueles filmes feitos para serem sentidos, e não necessariamente compreendidos. É desafiador e experimental no sentido mais direto do conceito, especialmente no que diz respeito à construção de imagens — ou à composição visual, nas palavras da própria Dulac — de A Concha e o Clérigo. Nos curtos 40 minutos de duração, a cineasta faz de tudo um pouco, interferindo ao máximo e de todos os modos na montagem — uma ideia que ainda estava se consolidando naqueles tempos, pouco mais de uma década depois das experiências originais de D.W. Griffith (O Nascimento de uma Nação) com a edição, inspirado pela literatura de autores como Gustave Flaubert e Charles Dickens — de sua obra.

    Estão presentes, portanto, no impressionismo/surrealismo de Dulac questões tais como: a relação do cinema com o tempo, cuja duração é totalmente manipulada, contrariando por completo a ideia de aceleração contínua de Hollywood; sobreposições não-lineares de imagens completamente distintas; o uso do desfoque, também criticando a "boa prática" estadunidense de jamais perder de vista a nitidez dos rostos de seus astros; a dispensa do emprego de cartelas, um método comum para explicar a trama e/ou colocar os diálogos diretamente na tela no cinema mudo; distorções anamórficas; e, entre outras técnicas, a interferência direta na película dos filmes em si, como na cena em que a cabeça do general é aberta e fragmentada em duas partes.

    É como se cada ato dos impressionistas — e também dos outros vanguardistas dos anos 1920, diga-se de passagem — tentasse ler a realidade de uma forma inédita: representar a morte, principalmente com a ajuda do som e das imagens, é fácil; portanto, por que não tentar trabalhar o fim da vida a partir de lentes mais inventivas? Neste aspecto, aliás, A Concha e o Clérigo não é único, mas sim mais um produto de uma longa linhagem de obras que buscavam experimentar com a sétima arte e, sobretudo, tentavam consolidar o status do cinema como arte em si, seguindo o "Manifesto das Sete Artes", escrito pelo italiano Ricciotto Canudo, em 1912. Em um período onde o cinema era encarado apenas como um entretenimento para as massas, os diretores europeus, e alguns americanos como William A. Wellman, evitavam o óbvio.

    Junto às obras dos construtivistas russos (Serguei EisensteinDziga Vertov) e dos expressionistas alemães (Fritz LangF.W. Murnau), as produções francesas como este média de Dulac radicalizaram a linguagem cinematográfica, e tornaram-se a fundação da concepção de que os filmes são, no fim das contas, expressões pessoais de seus criadores. A Concha e o Clérigo, portanto, em um nível global, ajuda a antecipar o conceito de "cinema de autor", desenvolvido pelos críticos da revista francesa Cahiers du Cinéma contra a forte e impassível estrutura hollywoodiana, baseada em uma estrutura totalizante, destinada a apagar não só a criatividade pessoal de cada artista, como também a pasteurizar a produção segundo seus paradigmas e regras.

    E retornado, por fim, ao âmbito mais "microscópico" da importância de A Concha e o Clérigo, também é possível perceber como o média foi um verdadeiro ponto de virada no que diz respeito à participação feminina nas telonas. Anteriormente às incursões de Dulac, a maior parte das produções femininas, ínfimas quando comparadas à quantidade de produções masculinas, perdeu-se, frequentemente por causa de incêndios — como vimos na edição anterior da Tirando o Mofo, dedicada à Asas, primeiro vencedor do Oscar, aproximadamente 75% das obras do cinema mudo foram destruídas porque a película utilizada para gravar os filmes era altamente inflamável, sendo substituída por um material mais seguro por volta de 1940, mais de uma década depois da invenção do cinema falado, em O Cantor de Jazz.

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    Assim, por mais que não tenha sido necessariamente a primeira cineasta — o prêmio pelo pioneirismo fica com a criminosa e injustamente esquecida Alice Guy Blaché, que rodou diversos filmes na mesma época que os mais celebrados e famosos Georges Méliès e os Irmãos Lumière —, Dulac pode ser encarada como uma divisora de águas, tanto por seu talento, quanto por sua participação ativa e pela resistência de suas obras. A partir de sua filmografia, é possível enxergar uma linhagem direta de cineastas e de profissionais que vêm quebrando os moldes na indústria, desde o início. A perspectiva radical da francesa encontra ecos, por exemplo, na arte de Agnès Varda (Cléo das 5 às 7) e de Chantal Akerman (Jeanne Dielman).

    Passeando entre a experimentação e o apelo ao público para questionar os papéis tradicionalmente desempenhados por homens e mulheres e também para elevar as figuras femininas ao patamar de protagonismo, outras cineastas como Sofia Coppola (O Estranho Que Nós Amamos), Claire Denis (Beau Travail), Petra Costa (Olmo e a Gaivota), Barbara Loden (Wanda), Kathryn Bigelow (A Hora Mais Escura), Lucrecia Martel (O Pântano), Lynne Ramsay (Precisamos Falar Sobre o Kevin), Kelly Reichardt (Certas Mulheres), Mary Harron (Psicopata Americano), entre muitas outras realizadoras. E se a lista ainda é, infelizmente, minúscula em comparação ao número de homens que comandam filmes, por outro lado, também é preciso ressaltar que a semente plantada por Dulac floresce cada vez mais. Até que enfim.

    A coluna retorna ao expediente normal no dia 7 de abril.

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