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    Festival de Berlim 2019: Eliza Capai discute ativismo político e juventude brasileira em Espero Tua (Re)volta (Exclusivo)

    O documentário sobre as manifestações estudantis estreia dia 9 de fevereiro na Berlinale.

    Em fevereiro, as manifestações de estudantes brasileiros contra a reforma da educação chegam à Alemanha. O documentário Espero tua (Re)volta, dirigido por Eliza Capai, foi selecionado para a Mostra Geração do 69º Festival de Berlim, uma seção dedicada a filmes sobre adolescentes, e voltados ao público infantojuvenil.

    O projeto retorna ao ano de 2013 para compreender porque as pessoas foram às ruas, e de que maneira as transformações do cenário político levaram ao impeachment de Dilma Rousseff, ao governo Temer e à eleição de Jair Bolsonaro. Os fatos são narrados e comentados por três jovens que participaram ativamente dos protestos estudantis: Lucas "Koka", Nayara Souza e Marcela Jesus.

    O AdoroCinema conversou com Capai sobre o projeto, ainda sem data de lançamento definida no Brasil:

    João Pina

    Poucos filmes sobre as ocupações desde 2013 se concentram em adolescentes. Qual é a importância deste recorte etário para você?

    Eliza Capai: Até conheço outros filmes sobre os adolescentes nas ocupações, mas talvez eles não tenham recebido o destaque de um festival grande como Berlim. A adolescência é um momento de formação. As pessoas estão se descobrindo, têm uma energia muito forte para fazer as coisas, e uma inconsequência que pode ser usada de forma positiva para a política.

    Durante a pesquisa, percebi como o movimento secundarista se organizou rapidamente e se dispersaria logo também, porque os jovens passam apenas três anos na escola. Muitos personagens que participaram do filme não estão mais ali: agora estão no mercado de trabalho, na faculdade. A geração seguinte não necessariamente aprenderia algo com essa experiência. Por isso eu considerava necessário registrar aquilo, de modo didático (no melhor sentido do termo), incluindo as vitórias mas também os traumas sofridos por eles, como a violência policial. Era importante trazer outros pontos de vista e questionamentos sobre o nosso sistema de ensino para outras gerações.

    Os adolescentes são o público-alvo do projeto?

    Eliza Capai: Parte do público-alvo são os adolescentes. Nós buscamos conversar com eles, mas não sei se majoritariamente - só o andamento do filme vai poder dizer isso. Estou muito feliz de estar na Mostra Geração 14+ em Berlim, que dialoga justamente com os secundaristas alemães. Estou curiosa com o que pode acontecer, porque a Alemanha é um país com políticas públicas muito diferentes das nossas. Quero ver se as questões do filme vão dialogar com eles – o fato de a escola não ensinar sobre movimentos sociais, não encorajar a organização.

    Berlim é uma cidade com uma história imensa, é um local que dividiu o mundo em dois há pouco tempo. Não sei se a juventude de lá possui os mesmos questionamentos da nossa. De qualquer modo, estou muito feliz em saber que a Marcela Jesus vai viajar para o lançamento no festival. Essa vai ser a primeira viagem internacional dela. Tenho certeza que a possibilidade de ver como a luta dela ecoa em outras pessoas será uma experiência valiosa.

    Carol Quintanilha

    Como encontrou os três protagonistas?

    Eliza Capai: Cada um tem uma história bem diferente. Parte da pesquisa do filme começou com uma investigação ampla sobre o que se tinha dito sobre as ocupações de 2015, e em 2016 com a CPI da merenda. Vimos muitos materiais, desde vídeos institucionais até gravações de celular da molecada. Além disso, olhamos imagens de arquivo de documentaristas que entraram nas ocupações, como o Henrique Cartaxo. Um terceiro momento foi entrevistar e gravar o que estava acontecendo naquele momento.

    Conversei com jovens de todo o país para ouvir a versão deles sobre como as origens do movimento, a importância daquele gesto e a consequência na vida deles. Assistindo ao material da Internet, descobri dois vídeos do Koka que viralizaram, inclusive aquele em que invertia os papéis e entrevistava uma repórter, questionando o entendimento da mídia sobre as ocupações. Achei fascinante o carisma deles e capacidade de dialogar com grupos diferentes. Ele estuda teatro há muito tempo, e depois das ocupações passou a atuar em Malhação, da Globo. É interessante que um menino negro vindo da periferia consiga transitar por ambientes tão diversos.

    Depois dele, perguntei ao Henrique Cartaxo se tinha percebido alguém cuja trajetória tivesse se transformado ao longo das manifestações, e ele me sugeriu a Marcela. No começo ela era uma jovem tímida, de cabelo alisado, que aparecia nos vídeos ao lado das protagonistas, mas quase não falava. Marquei uma entrevista com ela e quando a conheci, dois anos mais tarde, fiquei surpresa, porque pareciam duas pessoas diferentes. Foi uma transformação enorme na vida dela, que aconteceu dentro das ocupações.

    A Nayara era a personagem que eu conhecia há mais tempo, porque ela estava dentro da ocupação da ALESP, onde começou o filme. Na última gravação oficial da ocupação da câmera, eu presenciei a forma de liderança da Nayara, que tinha sido eleita presidenta da União dos Estudantes. A forma como ela sobe na mesa, conversa com os estudantes, enfrenta policiais e discute com vereadores deixava claro que se tratava de uma novíssima liderança. Ela se impôs ao filme. Em comum, os três têm uma disponibilidade muito grande para dividir as suas histórias, especialmente sobre um tema que recebeu uma atenção negativa por parte da sociedade.

    Carol Quintanilha

    Por que decidiu colocar os jovens como comentaristas do material de arquivo?

    Eliza Capai: O processo de edição foi bem complexo. O que eu tinha claro desde o começo era o fato de que a luta dos estudantes não poderia ser simplificada na hora de explicar. Ter três personagens para contar como era, para dar a voz, era uma forma de espelhar a diversidade e a discussão nas ocupações, onde estas questões são debatidas com frequência. Ao longo do filme, cada protagonista roubava a cena e trazia para si a narrativa. Fizemos grupos de estudos com outros secundaristas que participaram das manifestações, e percebemos a vontade de dialogar, mas também as divergências internas. Era importante o filme representar esse diálogo.

    Os movimentos sociais hoje precisam de diálogo, o que não significa concordar em tudo, mas é necessário encontrar convergências. Por isso, a narrativa buscou representar essas diferenças. Além disso, fiz questão de checar os fatos. Quando eles contavam lembranças que não poderiam ser verificadas, preferi deixar de fora. Quis trazer diversos pontos de vista, porém todos verdadeiros. São posicionamentos reais, legítimos, e às vezes conflitantes - essa é a complexidade da própria luta. E eles são moleques, então de repente um papo sério é entrecortado por piadas e uma música. Nem precisei me esforçar para trazer isso ao filme, foi espontâneo.

    Carol Quintanilha

    De que maneira acredita que as transformações políticas vão influenciar na leitura do filme?

    Eliza Capai: Inicialmente, o lançamento deveria acontecer pouco antes da eleição de Bolsonaro. O filme foi selecionado em festivais, mas não aceitamos porque ele não parecia concluído, faltava aquele final [a posse de Jair Bolsonaro] para parecer completo, porque aquilo encerrava a narrativa. Bolsonaro legitima e verbaliza um discurso cruel sobre a nossa História.

    Se a gente pensa que o Brasil é o último país latino-americano que acabou com a escravidão, e onde a escravidão nunca acabou de fato – basta ver os presídios -, ele representa a manutenção do status quo, mas de modo escancarado. Quando você tem um presidente que promete acabar com todos os ativismos e varrer a esquerda para o exílio, isso sublinha como são fortes os movimentos sociais, e como são perigosas "as esquerdas", como ele chama. Eu não conheço nenhuma história em que as elites tenham promovido avanços sociais por livre vontade; são processos que ocorrem com muito esforço. Os nossos direitos trabalhistas, por exemplo, foram fruto de muita luta. Bolsonaro permite entender o nosso país atual. Ele deixa claro que a luta será necessária para garantir um mínimo de dignidade para as minorias no país. Ele representa a ditadura que não quer acabar.

    Tenho vontade de lançar o filme nas escolas e promover debates. É claro que existe um incômodo muito grande com o projeto Escola Sem Partido, que na verdade é a "Escola Sem Crítica". A ideia do filme é justamente suscitar debate, críticas. Não sei de que maneira isso poderá acontecer no novo cenário político, que repudia os ativismos e a liberdade nas escolas. Em certo ponto do filme, a Marcela lembra que, quando somos reprimidos, a nossa revolta triplica. A repressão escancarada no Estado de SP sobre o Passe Livre ilustra o novo tempo que vivemos. Só vamos descobrir com o tempo o que virá de resposta à repressão antidemocrática.

    Você pretende acompanhar a trajetória dos três personagens após o filme? Acredita ter responsabilidade pela maneira como o filme impactará a vida deles?

    Eliza Capai: Desenvolvi uma relação de afeto muito grande com os três. A relação curiosa: por um lado, é algo muito horizontal, porque eles me ensinaram muito. Tenho noção do meu lugar de fala como mulher branca de classe média. Os meninos me trouxeram um debate muito mais profundo, mas por outro lado, tenho a idade para ser a mãe deles.

    Tenho muita preocupação com a repercussão do filme na vida dos três devido a este ambiente político. A Nayara se expõe como LGBT, a Marcela revela as crises de ansiedade que sofre. Eu me preocupo com a maneira como esses meninos serão percebidos após o lançamento em circuito comercial no Brasil. Cheguei a dizer que se eles não se sentissem à vontade de lançar no Brasil, por causa do contexto, eu entenderia, mas eles foram firmes em dizer que fazem questão de lançar, e acreditam que o lançamento é mais importante agora do que nunca. Eles estão conscientes dessa exposição.

    Espero que o filme traga para eles mais situações interessantes. A Marcela é neta de uma empregada doméstica que nunca se alfabetizou. Em duas gerações, ela se tornou protagonista de um filme que vai ser exibido pelo mundo afora. Ela pode aspirar a outras coisas além dos exemplos que tinha ao redor dela na periferia, e que são exemplos reduzidos. Isso se transformou nos últimos anos. Quero que ela descubra novas possibilidades e permita novos intercâmbios. Koka é ator, então torço para que isso abra portas e o coloque em novos circuitos; e para a Nayara, que isso contribua ao ativismo. É ótimo ter um registro de quando ela começava a ser líder estudantil. Acredito que ela possa se tornar uma grande liderança política. Sempre vou ter curiosidade de saber o que está acontecendo com eles. Criamos laços afetivos, agora não dá pra voltar atrás. O filme vai fazer parte da nossa história.

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