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    Tirando o Mofo: Touro Indomável, uma ópera de violência e redenção

    Com o boxe de volta às telonas em Creed II, é hora de relembrar o maior clássico do esporte: uma das obras-primas de Martin Scorsese.

    Em câmera lenta, sob a mira atenta da explosão dos flashes, dos acordes de Cavalleria Rusticana e da névoa que rodeia o ringue — ou, melhor dizendo, o palco —, Jake La Motta (Robert De Niro) se prepara para mais um combate com a fúria e a força que inspiraram o apelido que recebeu: o Touro Indomável. Uma das obras-primas de Martin Scorsese, considerado por muitos como o mais importante longa do realizador nova-iorquino, este épico de boxe aparenta simplicidade em sua premissa. Mas essa aura logo se dissipa para apresentar sua real essência: uma ópera de redenção e violência sobre a psique humana.

    Se a qualidade de uma obra é medida pela quantidade de níveis subterrâneos que ela atinge, pela quantidade de interpretações que abre, então Touro Indomável certamente tem uma pontuação altíssima neste sistema. Durante 2h10, Scorsese e De Niro colocam um sem-número de cartas na mesa com a naturalidade de quem está apenas rodando um longa biográfico sobre um boxeador falido que, para permanecer nos holofotes, decide seguir uma decadente e fracassada carreira como comediante stand-up. Mas o que importa aqui, de fato, não são os eventos reais ou o esporte em si.

    Este drama nos é importante por duas leituras completamente distintas entre si, sendo a primeiro deles sua essência como uma remontagem moderna do Otelo de William Shakespeare, nas palavras do finado crítico Roger Ebert. Afinal de contas, toda a desgraça da vida de La Motta decorre de seu avassalador e ciúme insano que — da mesma forma como na história do Mouro de Veneza, que tem suas boas intenções envenenadas pelo traiçoeiro, vil e vingativo Iago —, fere por completo a saúde física e mental de sua jovem e bela esposa Vikki (Cathy Moriarty), a trágica Desdêmona da vez.

    Por meio de ângulos inusitados e por um inventivo emprego do desaceleramento do tempo, algumas das marcas registradas de Scorsese, o realizador coloca sua plateia dentro da mente do boxeador, o protagonista de um estudo visceral sobre a masculinidade tóxica e sobre o peso da culpa. Mais que um boxeador, o La Motta do longa é júri e executor: quando vence suas lutas, julga a si mesmo como um touro, um campeão, e se dá de “presente” o amor de uma mulher mais jovem — ela chega para substituir a primeira esposa, personagem que sai de cena como uma nuvem se dissipa no céu.

    Quando perde, no entanto, o peso do fracasso recai sobre os ombros de todos ao redor do boxeador, o que inclui seu fiel e explosivo irmão, Joey (Joe Pesci), e a própria Vicky, que é transformada em uma traidora e adúltera pela ótica perturbada do protagonista. Nos momentos em que seus familiares não podem sofrer, La Motta vai ao ringue com a postura de alguém que deseja ser castigado por todos os seus pecados, como se buscasse a expiação por meio dos ganchos que recebe continuamente no rosto, na brutal e icônica luta final contra Sugar Ray Robinson (Johnny Barnes), um dos pontos altos de Touro Indomável.

    Na interpretação de De Niro, que praticamente codirigiu o longa ao lado de Scorsese — logo retornaremos a este ponto —, o "Touro do Bronx" é aquele que sentencia e que se encarrega das punições outorgadas, seja contra os outros, seja contra ele mesmo. E se a batalha que deixa seu rosto completamente desfigurado, como se a máscara humana caísse e revelasse a face do monstro, anuncia a profundidade psicológica desta cinebiografia, é a curta e trágica sequência da cadeia — na qual La Motta elege um muro de concreto como sua última, e invencível, oponente — que finalmente atesta a genialidade de Scorsese.

    Ao fazer a luz abandonar o lutador por completo, quando ele senta-se nas sombras, no banco de sua cela, o realizador e o ator não só fugiram dos estereótipos estabelecidos pelos filmes de boxe — em alta à época, em 1980, em decorrência do sucesso espetacular e inesperado de Rocky, um Lutador —, como também encontraram o caminho para realizar uma obra-prima ao dissecar o caráter destruidor do machismo: o produto de uma mentalidade paranoica e derrotada, que tenta reafirmar sua "superioridade" ao exorcizar seus demônios pela via da brutalidade, frequentemente contra a figura feminina.

    Por seus aspectos narrativos, em suma, este épico de boxe é o melhor filme de boxe de todos os tempos porque deixa o esporte no espelho retrovisor assim que pode — as sequências no ringue, todas filmadas como se o diretor de fotografia Michael Chapman fosse ele mesmo um competidor, são belíssimas, mas duram menos de 10 minutos, apenas 7,6% da duração total — para focar no âmbito psicológico de um vilão comum. Ainda tão comum, infelizmente, nos dias de hoje, como se ainda vivêssemos nos anos 40 ou em tempos anteriores, como mostra um muito debatido e recente comercial da Gilette.

    Evidenciado o lado violento da ópera que é Touro Indomável — na visão de Chapman, todos os embates funcionavam como árias (os solos das óperas, a grosso modo) no roteiro —, resta agora nos voltarmos para o lado redentor, que é diretamente ligado à supracitada relação quase simbiótica entre Scorsese e De Niro. Porque por mais que a biografia de Jake La Motta seja considerada como uma das principais obras do realizador, ele demorou quatro anos até aceitar comandar o projeto (idealizado pelo ator a partir da biografia do boxeador) e praticamente só cedeu à pressão de De Niro para salvar a si mesmo da morte.

    Nos anos 1970, Scorsese rapidamente atingiu um precoce auge com seu clássico Taxi Driver, vencedor da Palma de Ouro de Cannes, em 1975. Rebelde e membro do disruptor grupo de cineastas que fundaram a Nova Hollywood, um movimento cinematográfico informal baseado em longas subversivos, que mudaram a face da filmografia estadunidense, o realizador nova-iorquino estava mais interessado em romper barreiras do que manter sua saúde. Foi isto que o levou a produzir o musical New York, New York, um abismal fracasso de bilheterias que o mergulhou em uma crise profissional e elevou seu vício em cocaína.

    As coisas escalaram para um nível inédito de tragédia e sofrimento quando Scorsese decidiu passar um feriado no Festival de Telluride, sediado nas montanhas do Colorado, como narra a matéria da Vanity Fair sobre a produção de Touro Indomável. No rarefeito ar local, o diretor, um asmático crônico, teve um colapso nervoso e foi levado às pressas para o hospital em seu retorno para Nova Iorque. Lá, o médico revelou que havia um risco iminente de hemorragia cerebral e Isabella Rossellini, namorada de Scorsese e fora dos Estados Unidos à época do ocorrido, declararia que não esperava rever o diretor com vida.

    Contra todas as previsões, o cineasta, que odeia esportes, começou a se recuperar, o suficiente para ouvir mais uma apresentação de De Niro sobre seu projeto dos sonhos. Para o ator, rodar a biografia de La Motta seria a tarefa perfeita para colocar Scorsese em pé novamente, especialmente ao contar a história da queda de um campeão, algo que acabara de acontecer com o próprio realizador. Assim, eles elencaram Mardik Martin, escritor de Caminhos Perigosos, para adaptar o livro acerca da vida do boxeador. O resultado, no entanto, frustrou aos dois, incluindo Scorsese, que cada vez mais sentia-se ligado ao projeto.

    Entra, então, o rebelde dos rebeldes, Paul Schrader, responsável pelo texto de Taxi Driver. Determinado a chocar a MGM, o roteirista queria incluir cenas pelo puro prazer de causar impactos, o que acabou afastando-o de Touro Indomável no fim das contas — de qualquer forma, Schrader descobriu a existência de Joey, o personagem que viria a revelar Pesci no cinema. Determinados a corrigir todas as falhas e levar o roteiro à perfeição, Scorsese e De Niro viajaram à Ilha de Saint-Martin, no Caribe francês, isolando-se do mundo com o único objetivo de concretizar a redação final do épico de boxe que os dois sonhavam.

    Uma longa e complicada produção depois — que durou meses, primeiro para De Niro treinar como boxeador, e depois para o ator embarcar em uma viagem de comilanças pela Europa, na qual ganhou 31 quilos para viver La Motta em sua fase tardia — e após um processo de montagem ainda mais duro, no qual Scorsese foi cuidadoso ao extremo por acreditar que este seria seu último filme, Touro Indomável chegaria às telonas. As reações da crítica, no entanto, foram irregulares, e a bilheteria foi pífia, uma vez que a United Artists, prestes a falir por causa do fiasco de O Portal do Paraíso, não pôde promover o longa.

    Eventualmente, Scorsese daria a volta por cima aos olhos da imprensa especializada e do público quando o filme foi indicado a oito Oscar, vencendo o de Melhor Ator e o de Melhor Montagem (Thelma Schoonmaker, cujo trabalho nesta obra é reverenciado como um dos melhores de todos os tempos). Mas mais importante do que a aclamação, as premiações e o fato de que Touro Indomável viria a ser considerado como um dos mais importantes longas de todos os tempos, Scorsese já havia retomado seu espírito:

    "Touro Indomável significou algo novo para mim. Eu disse, 'Espera aí — Não posso negar quem sou ou de onde vim'. Então, abracei meus pais novamente. Eles se tornaram uma parte da minha vida no cinema. Meu pai está em Touro Indomável. Minha mãe aparece em vários de meus filmes. Eles se tornaram pessoas que estavam nos sets para me ajudar a lembrar quem sou e do lugar de onde vim. Eu tinha muita raiva guardada dentro de mim e acho que tudo simplesmente explodiu em Touro Indomável", declarou Scorsese, que acabou enxergando no ringue de boxe uma metáfora para a vida e para a sétima arte.

    É por isso que, em paz, o diretor acabou dedicando a obra ao seu professor da faculdade de cinema, o então recém-falecido Haig Manoogian. Pegando emprestado versículos da Bíblia, os de número #24 e #25 do capítulo 9 do livro de João, Scorsese finaliza Touro Indomável com as seguintes palavras, em uma cartela: "Pela segunda vez, chamaram o homem que fora cego e lhe disseram: 'Para a glória de Deus, diga a verdade. Sabemos que esse homem é pecador'. Ele respondeu: "Não sei se ele é pecador ou não. Uma coisa sei: eu era cego e agora vejo!"

    Católico devoto, o realizador encontrou neste épico de boxe a chance de renascer por completo, em uma trajetória tão espiritual quanto física, ainda mais potente pela relação visceral estabelecida pelo diretor com seu filme e com seu protagonista. E quando, no encerramento de Touro Indomável, La Motta imita o Terry Malloy (Marlon Brando) de Sindicato de Ladrões, é como se Scorsese também dissesse que ele "poderia ser um competidor". A diferença, no entanto, é que o realizador não só é um competidor: ele também é um vencedor. E sem De Niro, essa ópera de redenção e violência jamais teria sido possível.

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