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    "First Reformed é sobre a usurpação da nossa cultura pelas grandes corporações", explica Ethan Hawke (Entrevista)

    Conversamos com o astro sobre o novo filme de Paul Schrader e sobre o atual estado cultural, ambiental e político do mundo.

    Mark Sagliocco/Getty Images

    O herói romântico de uma trilogia cultuada, o novato que é obrigado a ser o parceiro de um violento policial, o membro de uma turma de jovens liderada por um professor idiossincrático, um pai durante 12 anos, um criminoso de quinta categoria, um caubói, e muitos, muitos personagens de Shakespeare. Estes são apenas alguns dos papéis que já foram vividos por Ethan Hawke, um destes singulares astros de Hollywood que já navegaram por todos os espectros das artes dramáticas e cênicas nos Estados Unidos, dos blockbusters às mais independentes peças teatrais.

    Mas nunca antes um padre, e talvez nunca antes o protagonista de um filme tão ímpar quanto o sombrio e espiritual First Reformed, mais recente longa do veterano Paul Schrader (Cães Selvagens). Indicado a 4 Oscar, dois como intérprete e dois como roteirista — e injustamente esnobado pela Academia nesta edição de 2019 da premiação, onde deveria concorrer à estatueta de Melhor Ator —, Hawke conversou com o AdoroCinema sobre a complexidade de seu personagem, o Reverendo Ernst Toller, a arte de Schrader e também acerca de questões espinhosas, como catástrofes ambientais, políticas e culturais:

    Pergunta: Paul Schrader trabalha com o que ele chama de estilo transcendental em First Reformed, um estilo baseado em um trabalho de câmera austero, menos cortes e que, por isso, requer uma certa lentidão, um registro temporal que é muito diferente da nosssa temporalidade contemporânea, uma vez que corremos cada vez mais rapidamente para dar conta de tudo hoje em dia. Você teve que diminuir seu próprio ritmo para criar o Reverendo Ernst Toller?

    Resposta: Nos últimos 50 anos, os filmes começaram a fazer todo o trabalho pelo público. A trilha sonora te informa exatamente o que você deve sentir, os movimentos de câmera informam exatamente o tipo de energia correto, as lágrimas nos olhos dos atores informam que aquele é o momento que você deve ficar triste. Isso dificulta o estabelecimento da relação do público com o filme, ao passo em que os filmes que Paul define sob o conceito de estilo transcendental, como os de Robert Bresson (Diário de um Padre) e de Ingmar Bergman (Luz de Inverno), criam um espaço, uma abertura que convidam o espectador a interagir.

    Você precisa de alguns segundos para registrar a diferença entre uma coisa e outra, mas o resultado pode ser muito poderoso porque estes filmes não ditam o que você deve sentir: você é que está entrando no filme. Como ator, isso é muito interessante porque é uma espécie de performance recessiva. Você basicamente tenta não atuar, ou você tenta não entreter o público o tempo todo. Nestes filmes, você tenta fazer com que o público "cace" você, ao invés de, como na maioria dos filmes, praticamente se jogar sobre os espectadores.

    P: Além de ser ator e roteirista, você também é diretor, tanto de cinema quanto de teatro. Como foi trabalhar com Paul Schrader partindo de sua perspectiva como cineasta? O que você aprendeu com ele?

    R: Foi uma experiência engrandecedora trabalhar com ele porque o conhecimento cinematográfico dele é total. Paul é íntimo com quase tudo relacionado à arte do cinema. Ele escreveu sobre cinema, pensou sobre cinema, editou e rodou muitos grandes filmes [...] Ele conhece o nosso negócio profundamente. É empolgante ser ensinado e guiado por alguém como ele. Estou na indústria há 30 anos e, quanto mais trabalho, cada vez mais me torno a pessoa mais experiente dos sets. Este é um sentimento terrível. Por isso, é incrível ter alguém com tanto a me ensinar como diretor.

    Lembro que quando me mudei para Nova Iorque pela primeira vez, assisti a uma sessão dupla de Taxi Driver e Touro Indomável. Eu tinha 19, 21 anos, não sei. Foi como levar um soco no estômago e um soco na cara. Os dois filmes são um nocaute. Foi aí que fiquei interessado pelo cinema de Paul. Logo assisti à Gigolô Americano e lembro que, anos depois, O Dono da Noite me marcou muito. E nós nos encontramos pela primeira vez como você acaba encontrando as pessoas pela primeira vez nesta indústria: em uma festa.

    Vittorio Zunino Celotto/Getty Images

    P: A sua carreira é baseada em uma combinação de papéis muito distintos entre si: você interpretou todo tipo de personagens durante sua trajetória. O que foi, portanto, que te atraiu neste personagem específico, neste reverendo? E você acredita que o Reverendo Ernst Toller é particularmente diferente dos outros personagens que você já viveu?

    R: Sim. Antes de mais nada, nunca pude interpretar um membro da comunidade religiosa antes. E poder trabalhar com um que foi criado claramente pela mesma voz que criou Taxi Driver, poder estar nessa linha de sucessão, poder fazer parte desse cânone, foi muito empolgante. A qualidade do roteiro era extremamente alta e sabia que o filme me daria a oportunidade de criar um retrato tridimensional de uma pessoa muito, muito complexa. Esse é o meu trabalho. Sou grato pela oportunidade.

    Adoro poder fazer coisas diversas. É empolgante se colocar em uma posição onde você não sabe ao certo o que vai acontecer. É por isso que dirigi um documentário, escrevi uma história em quadrinhos, dirigi uma peça, fiz Shakespeare e depois fiz um filme de terror. Gosto de me colocar em situações onde não tenho certeza o que fazer porque isso ajuda as coisas a se manterem novas para mim, me ajuda a manter minha curiosidade e minha alegria. Ficaria muito cansado se sempre interpretasse personagens brutais e sombrios como o Reverendo Toller. E também ficaria muito entediado se apenas fizesse comédias.

    P: First Reformed parece ser uma combinação entre o estilo cinematográfico de Paul Schrader e o de seus mestres, como Bresson e Bergman, que você citou antes, cineastas que seguem o estilo transcendental. Assim, de um ponto de vista da sua interpretação, você buscou alguma influência nos filmes anteriores destes diretores: tanto nos de Schrader, quanto nos de Bresson, como Diário de um Padre, que é uma das principais referências de First Reformed?

    R: Bresson tinha quase que uma reação alérgica à atuação. Ele amava o ser, não estava tão interessado nos atores em si, como Bergman estava. O que gosto sobre os filmes de Bergman é que eles são tão complexos quanto os de Bresson, usando as mesmas técnicas, mas também abraçam os atores. Bergman trabalhou em uma companhia de teatro da mesma forma como John Cassavetes e outros realizadores semelhantes, sempre com os mesmos atores, atingindo algo de muito visceral e impressionante do ponto de vista da interpretação. Ao passo em que adoro os filmes de Bresson, o meu lado ator não é tão excitado assim por eles. Você não vê tanto a vida humana quanto o trabalho do diretor. Então, ao meu ver, Bergman criou um modelo mais interessante para a minha performance em First Reformed.

    P: First Reformed é um drama que trata de temáticas espinhosas, ao mesmo tempo fundamentalmente particulares ao cenário escrito por Schrader e muito universais. No Brasil, por exemplo, também encontramos organizações religiosas gigantescas como a Abundant Life e também enfrentamos problemas ambientais, como a recente tragédia de Brumadinho, provocados por grandes corporações. Como foi trabalhar com estes temas tão complexos?

    R: Tentei deixar o subtexto do filme falar por si próprio. A ideia de uma pequena paróquia sendo usurpada por uma igreja enorme e totalizante ressoa em diversos âmbitos, seja na arquitetura, na medicina, nas artes ou nos esportes. É uma analogia do sistema de Hollywood: os filmes independentes versus os filmes corporativos, da máquina. Os fazendeiros também passam por isso, com os pequenos produtores rurais em pé de guerra com os latifundiários, o agronegócio. First Reformed é sobre a usurpação da nossa cultura pelas grandes corporações. Existem muitas coisas que Paul coloca sutilmente no roteiro, até mesmo como o fato de que a igreja de Toller fazia parte da rota de fuga dos escravos. O movimento abolicionista, nos Estados Unidos, era um movimento radical para a época. Resgatar escravos significava quebrar as leis, dava pena de morte.

    Então, o fato de que Paul me coloca neste cenário como alguém que tenta ajudar um ativista ambiental também traz uma questão subliminar: como as pessoas enxergarão alguém como Michael (Philip Ettinger) daqui a 100 anos? Acho que isto está no DNA do roteiro [...] Sempre que você aborda a experiência humana de forma sincera, seja em um filme, em um livro ou o que quer que seja, haverá um ponto de vista político porque será uma obra sobre nós mesmos, sobre nossa época. E o que adoro sobre First Reformed é que ele não tem uma agenda política, não tenta impor nada ao espectador. Ele apenas faz as perguntas mais difíceis: de onde vêm nossos líderes? Sabemos quem fala pelas grandes corporações, mas quem é que defende as árvores? Quem é que fala pelas pessoas que não têm dinheiro? Estas são perguntas enormes com as quais todos nós temos dificuldade em lidar. E não há uma resposta única. First Reformed fala sobre uma angústia desesperadora que é política. Um filme é bom não porque é de esquerda ou de direita, mas porque é verdadeiro.

    P: Você acredita que Deus, ou qualquer outra divindade que seja, nos perdoará por nossos pecados contra a natureza? Ou já estamos condenados?

    R: Essa é a questão do filme. Essa é a questão que surge quando assistimos ao noticiário e vemos coisas que não queremos ver. Não tenho uma resposta para isso, mas acredito que nós, os adultos deste mundo, precisamos pensar nas consequências de nossas ações, neste belo mundo que recebemos e no que deixaremos para as futuras gerações. Ouvimos muito sobre o futuro, mas ninguém pensa sobre isso. É um inconveniente. Eu não faço isso. É difícil entender como podemos ser parte da solução e sei que a maioria de nós quer ser parte da solução. Então, olhamos para nossos líderes para que eles nos levem às melhores versões de nós mesmos, para descobrir como fazer isso. Mas o problema é que o dinheiro sempre fala mais alto. Então, nós trocamos a evolução humana a longo prazo pela ganância a curto prazo. First Reformed coloca o dedo na ferida dessas questões.

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