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    Admirável Mundo Pop: As cinebiografias musicais jamais estão à altura das obras dos ídolos

    O filme sobre Freddie Mercury e o Queen poderia ser mais realista, mas não dava para esperar outra coisa.

    Cinebiografias musicais são abundantes o suficiente para serem consideradas um gênero por si só. Uma olhada rápida na página "Filmes Biográficos sobre Músicos" na Wikipedia aponta mais de 130 itens. Nem todos são sobre artistas populares conhecidos mundialmente. Menos de vinte por cento dessas obras são sobre artistas de rock -- pessoas as quais, graças aos estilos de vida "atípicos", teriam tudo para render histórias incríveis dignas da tela de cinema.

    A épica biografia Bohemian Rhapsody (leia aqui a crítica do AdoroCinema) não é historicamente precisa, mas foi feita desse jeito porque os membros do Queen assim autorizaram. No caso, a intenção de Brian May e Roger Taylor, guitarrista e baterista, respectivamente, foi criar a melhor versão possível da história da banda eternizada por Freddie Mercury. "Melhor", no caso, não está relacionado ao aprofundamento em temas espinhosos, constrangedores e doloridos. O filme escolhe uma versão da realidade que convém aos envolvidos, que pode ser interpretada como superficial, tendenciosa e até um tanto moralista, e é isso que o público experimenta durante mais de duas horas. Os reviews de sites internacionais concordam nisso.

    Longas-metragens que são vendidos como "cinebiografias oficiais" deveriam ser analisados e absorvidos com bastante cuidado. Sempre que assistimos a um filme inspirado em fatos reais, temos contato com uma versão da verdade proposta pelos seus "criadores", que são um enorme grupo que envolve o estúdio, diretor, roteiristas e produtores (que na maioria das vezes, são os próprios personagens da história). Essas escolhas estão obviamente ligadas a escolhas narrativas, e também aos interesses dos indivíduos retratados ou, no caso de pessoas mortas, daqueles que cuidam de suas memórias e legados. Se estamos ou não vendo uma reprodução fiel do que aconteceu de verdade, jamais saberemos, porque não estávamos lá para comprovar a veracidade das cenas. Se bem que isso não deveria fazer diferença para o público geral, certo? Ou será que deveria?

    Uma cinebiografia deve ser historicamente precisa para ser considerada de boa qualidade? É uma pergunta que eu me faço quando vejo um filme como Bohemian Rhapsody. Como um grande fã do Queen, eu adoraria assistir a uma reprodução realista dos bastidores da música que amo e me acompanha há tanto tempo. Quero ver as partes boas, grandiosas, engrandecedoras. Mas também estou lá pelas partes ruins, vergonhosas, deprimentes. Como consumidores, não gostamos de ser enganados. Se um filme se baseia em fatos que aconteceram na vida real, vamos presumir que o que está na tela é verdadeiro, ou o mais próximo disso. Se este for o caso, ou seja, se as discrepâncias forem gritantes (e em certos casos aqui, elas são), os fãs têm o direito de saber -- aliás, isso é algo que o filme, em uma cena especialmente polêmica, demonstra discordar.

    O que eu mais gosto em cinebiografias é a precisão com que personagens históricos são retratados, ainda que esse não seja o principal atrativo de um filme desse gênero. Queremos que o ícone do pôster da parede ganhe vida, para podermos sentir um gostinho autêntico de como a lenda agia e pensava. Não queremos ver Bohemian Rhapsody e lembrar a todo tempo que aquele é o cara do Mr. Robot fazendo cosplay de Freddie Mercury. Ainda bem que não é o caso deste filme, porque Rami Malek está tão bem que nem faz tanta diferença ele não ser tão parecido fisicamente com o saudoso cantor (mas lentes de contato escuras teriam dado um toque especial à fantasia). Mas se o ator carrega a obra nas costas, é menos por seu próprio mérito e mais pela obsessão do filme em jogar dentro das regras e ser superficial, romantizando excessivamente sua história.

    É preciso entender as escolhas que levaram Bohemian Rhapsody a ser como é. Estava claro que se o filme não tivesse o aval dos integrantes do Queen, não teria permissão de trazer a música da banda na trilha sonora -- e convenhamos, daí nem haveria motivos para se levar o projeto adiante. Então o que temos é a versão da trajetória de Freddie Mercury que seus companheiros de trabalho quiseram que o mundo soubesse (ou que permitiram que fosse aprovada). Talvez as intenções fossem proteger o legado da banda, tirar um pouco os holofotes/e desmistificar Freddie, valorizar as importâncias dos outros integrantes, ou mesmo jogar certa poeira para debaixo do tapete. Ou talvez a ideia fosse excluir excessos e detalhes confusos para tornar a história mais ágil e apropriada ao cinema-espetáculo.

    Seja qual for o caso, tudo é aceitável e faz parte do que chamamos de "licença criativa". Afinal, estamos falando de um filme com roteiro, e não de um documentário jornalístico. Mas fico pensando se os fãs não teriam o direito de conhecer certas verdades, ainda mais quando o principal personagem da história não está mais entre nós para se defender. (Sobre isso, é válido lembrar que Freddie Mercury era obcecado por privacidade, o que dá o que pensar sobre o que ele acharia de Bohemian Rhapsody.)

    Cinema é entretenimento e ponto de vista, mas também pode ser consumido como verdade, ainda mais quando o filme se baseia em personagens reais e acontecimentos de interesse público. Muita gente vai assistir a Bohemian Rhapsody e tirar dali uma interpretação levemente equivocada, ou não tão próxima da realidade, da vida e obra de Freddie Mercury e o Queen. Felizmente, não há filme, bom ou ruim, que consiga diminuir o valor do legado de um grande artista.

    Pablo Miyazawa é colunista do AdoroCinema e consome cultura pop desde que nasceu, há 40 anos, de Star Wars a Atari, de Turma da Mônica a Twin Peaks, de Batman a Pato Donald. Como jornalista, editou produtos de entretenimento como Rolling Stone, IGN Brasil, Herói, EGM e Nintendo World.

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