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    Mostra SP 2018: "O que se vê é cumplicidade, não incesto", explica Pablo Trapero sobre A Quietude (Entrevista exclusiva)

    Cineasta argentino comanda drama familiar estrelado por Berenice Bejo e Martina Gusmán.

    Três anos após O ClãPablo Trapero está de volta com A Quietude, drama familiar em que ele abandona o privilégio por protagonistas masculinos para acompanhar de perto a relação das irmãs Eugenia (Bérénice Bejo) e Mia (Martina Gusman). Uma mora na França, a outra na Argentina; uma é a queridinha do pai, a outra da mãe; mas são várias as coisas e sentimentos que elas compartilham ao se reunirem no rancho que dá nome ao filme.

    Exibido pela primeira vez no Festival de Veneza deste ano, o longa-metragem faz parte da programação da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e o AdoroCinema teve a oportunidade de conversar com o realizador argentino sobre sua mais recente obra, coestrelada por Graciela Borges e Edgar Ramirez.

    AdoroCinema: Desde Leonera você não colocava uma personagem feminina em tamanha evidência e aqui ainda são três bastante diferentes. Como você fez para "encontrar" essas mulheres e qual foi sua inspiração para contar tal história?

    Pablo Trapero: Desde o princípio o conceito era um filme sobre mulheres. Um grande desafio, considerando que sou um homem. Desde o começo também eu queria escrever esse projeto para Martina. Fizemos muita coisa, ela é minha companheira, mas há anos não trabalhávamos juntos, então eu queria fazer uma personagem intensa como a de Leonera. Leonera tinha mulheres no mundo de homens, com regras masculinas, e aqui é um mundo de mulheres que criam suas próprias regras. É o que acontece principalmente com Mia, que está tentando encontrar seu espaço, seu lugar, sua identidade. Compartilhei as primeiras ideias com Martina para entender e explicar minha busca e ela esteve muito presente desde cedo nesse plano de duas mulheres simbióticas, que de algum modo poderiam ser quase como uma única personagem feita por duas atrizes, sendo possível ver também Mia como a versão de Eugenia na Argentina e vice-versa. É um pouco a ideia de intimidade e simbiose em que não está claro quem é quem, às vezes até visualmente. Isso também estava no roteiro desde o começo, uma história de amor tão intensa em que parece não haver limites, mas um amor fraternal, no fim das contas.

    AC: Curioso você falar nisso, porque eu, particularmente, nunca tinha reparado na semelhança entre a Martina e a Berenice, que estão iguais no filme. Foi você que percebeu isso? Como a Berenice entrou na história?

    PT: A conheci em 2010, acho [2011 na verdade], quando Martina foi jurada no Festival de Cannes e O Artista fazia parte da seleção. Conheci Berenice, conheci Michel [Hazanavicius], seu companheiro, vi que elas eram bastante parecidas e falei, meio de brincadeira, que um dia faríamos um filme em que elas seriam irmãs.

    AC: De que maneira você encontrou o tom para mostrar o desejo sexual, tão presente em A Quietude desde o começo?

    PT: As personagens nunca falam o que pensam de verdade. O que dizem em palavras não é o que sentem, o exemplo maior sendo a cena do jantar. Todos protegem seus sentimentos e o único momento em que são reais e sinceros é na sexualidade. Aí não há a construção do texto, seus corpos são livres e não há mentira, são eles mesmos. Mesmo Esmeralda [personagem de Borges], é de noite, sozinha, que se mostra verdadeiramente emocionada, uma mulher aparentemente muito fria e sem vínculos.

    AC: E você teve dúvidas sobre como explorar isso entre as irmãs?

    PT: Sim e também é algo muito intenso, pois, como eu disse, há a simbiose. Há muita intensidade, mas penso que o que se vê é cumplicidade, não incesto. Se fosse entre dois homens ou dois irmãos as pessoas reagiriam diferente. O cinema já mostrou muitos homens se masturbando e o imaginário popular aceita mais isso do que duas mulheres fazendo o mesmo. Aqui são duas irmãs, mas me interessa também provocar esse imaginário, mostrar que é possível. São irmãs que compartilham tudo com muita intensidade, até o homem, as roupas... Há uma relação de amor, não de incesto explícito.

    AC: Um termo que tem sido muito usado para falar de A Quietude é "telenovela". Você rejeita esse tipo de leitura, se inspirou realmente no "gênero" ou vê algum sentindo nisso?

    PT: A telenovela se apropria do melodrama, que é anterior. Como exemplo de inspiração posso citar BuñuelO Anjo Exterminador poderia ser uma telenovela, O Alucinado - que inclusive tem Arturo de Córdova, um grande ator de telenovelas na época -, A Bela da Tarde... A Quietude é como uma pequena homenagem silenciosa a um tipo de cinema que foi muito importante para mim. Janela Indiscreta, de Hitchcock, também é um pouco melodrama, assim como Um Corpo que Cai, que tem uma virada bem de telenovela. Para mim o melodrama é parte de nossa cultura latina, onde os sentimentos são extremos e as notícias parecem surreais. Jogo um pouco com isso, pois estamos acostumados a conviver com o absurdo de maneira natural. A Quietude, nesse sentido, é um filme que reflete sobre o absurdo, e é preciso muito humor negro para sobreviver no absurdo.

    AC: Em 2019 o lançamento de seu primeiro longa, Mundo Grua, completará 20 anos. Que balanço você faz da sua carreira?

    PT: A primeira coisa que sinto ao pensar nisso é que estou velho [risos]. Não sou muito consciente de todo esse tempo, porque minha maneira de trabalhar é pensando no presente. Só entendi a influência de Mundo Grua no mundo, e especialmente na América Latina, muitos anos depois. Se eu tivesse tomado consciência na época acho que não teria filmado mais nada, porque seria muita pressão. Aprendi com essa experiência que não faz sentido para mim, como realizador, analisar meu trabalho. Isso é com a crítica, com o público. Como realizador sigo uma regra fundamental do tênis: o mais importante é pensar na jogada seguinte, não ficar preso à que passou, tampouco focar no futuro distante. Para mim cada filme, cada cena, é o que mais importa. Isso não quer dizer que eu não me importe com o que fiz [...], mas o mais importante é a paixão que me leva a planejar os projetos. Trabalhei com a mesma intensidade em A Quietude e Mundo Grua. Obviamente muito tempo passou, tenho mais experiência, mas minha maneira de encarar os projetos, as cenas e os personagens não é muito diferente. Só estou mais velho e interessado em explorar novos caminhos. Não olho para trás. Penso em tudo que gostaria de fazer e não encontro tempo.

    AC: E o cinema nesses últimos 20 anos, especialmente o argentino? Como você vê as transformações e imagina o futuro?

    PT: Para mim é impossível pensar o ato cinematográfico fora de uma crise. Querer contar histórias e compartilhar mundos é um feito doloroso, crítico. Ninguém que deseja fazer cinema deve pensar que é simples, do contrário deve mudar de carreira. Por definição o cinema é o exercício de enfrentar a frustração, então, em nossos países - que têm problemas maiores do que os cineastas, vide as notícias de domingo -, como vamos lamentar não ter dinheiro, sendo que existem problemas muito maiores? Pessoas não têm o que comer e é isso que a sociedade tem que resolver. Claro que para mim é fundamental que o cinema seja mais estável, pois representa a realidade e nos ajuda a refletir e mudá-la, mas não dá para achar que fazer cinema será fácil na Argentina, no Brasil ou em qualquer país da América Latina. Está muito melhor do que quando comecei, sinto que é mais fácil contar histórias, inclusive graças à tecnologia, que fez isso ser possível com um telefone. Na Argentina existe uma Lei do Cinema que tem justamente esse tempo, cerca de vinte anos, e ajudou muito. Agora é um período de crise novamente, mas creio que as crises nunca destruirão o cinema argentino, que tem força, vitalidade e curiosidade. E não é um fenômeno local, pois nunca vimos tantas expressões cinematográficas na América Latina como agora. Estamos em Hollywood, em Cannes, filmando e lançando de forma anárquica e independente, em festivais pequenos, fora do circuito comercial... Para mim, que gosto de pensar de maneira otimista, estamos muito melhor do que há 20 anos, mas ainda há muito o que fazer. Em países como os nossos é preciso aprender a enfrentar as crises e lutar, porque nunca será estável. Temos problemas básicos que vêm de décadas e ainda serão necessárias muitas mais para que as coisas se ajeitem. Nosso compromisso como cineastas é colaborar enquanto realizadores e brigar para que nosso espaço seja preservado e ampliado.

    Confira a crítica de A Quietude, que ainda não tem previsão de estreia no Brasil, mas será exibido na repescagem da 42ª Mostra nos próximos dias e também no Festival do Rio.

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