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    Mostra SP 2018: "Pedro e Inês é uma história de amor espalhada em 600 anos", explicam o diretor e a atriz principal (Exclusivo)

    Conversamos com António Ferreira e Joana de Verona sobre este "épico contemporâneo".

    Você já deve ter ouvido falar nesta história: Dom Pedro I, de Portugal, se apaixonou profundamente por uma galega, Inês de Castro, com quem teve um romance extraconjugal. Ao descobrir o caso, o pai dele, Dom Afonso VI, mandou matá-la. Inconformado, Dom Pedro I desenterrou sua amada e fez uma procissão com o cadáver, para expor o caso a todos. Dizem até que a coroou rainha depois da morte...

    O filme Pedro e Inês parte do romance "A Trança de Inês", de Rosa Lobato de Faria, para apresentar a história de maneira original. Na trama, três versões deste amor trágico se alternam ao longo dos séculos: uma na Idade Média, outra há 300 anos, e a terceira em tempos contemporâneos. Como seria o romance proibido em cada período? 

    Durante a 42ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o diretor António Ferreira e a atriz Joana de Verona, que interpreta o papel principal, conversaram com o AdoroCinema sobre o projeto:

    Quais foram os desafios de misturar a História com uma fantasia?

    António Ferreira: Bom, primeiro eu precisei estudar muito a Idade Média! Eu não queria dizer nada errado, e depois ser contestado por historiadores portugueses. Embora não seja um filme totalmente fiel à História, eu queria que pelo menos o trecho passado na Idade Média tivesse rigor nos fatos. Outro desafio foi a reconstituição histórica. Nós não tínhamos muito dinheiro, mas queríamos trazer algo belo e exuberante, e neste sentido fico feliz com o resultado.

    Joana de Verona: A figuração, a luz, todos estes aspectos foram importantíssimos. Tudo foi filmado com luz natural e luz de velas, com 400 velas, para ser fiel à época. Para mim, o mais interessante foi ver a preocupação com esses aspectos. Tudo foi muito bem pensado.

    António Ferreira: Sim, estudamos muito Stanley Kubrick e Barry Lyndon!

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    Para vocês, onde se encontra o limite entre o que precisava ser fiel aos fatos e o que poderia ser ficcionalizado?

    António Ferreira: Essa história já foi muito contada pelos poetas e romancistas ao longo dos séculos. Então, algumas coisas são fatuais, mas outras fazem parte do mito. Eu utilizei ambas. A coroação de Inês morta, por exemplo: Pedro de fato desenterrou-a, levou-a em procissão, mas não houve uma coroação dela como rainha. Isso já faz parte do mito. Mas é óbvio que eu não poderia deixar uma cena dessas fora do filme - é dessa matéria que vive o cinema. 

    Joana de Verona: É ótimo não ficar refém da história, poder partir também aos mitos, às crenças, ao que já se desenvolveu nos livros. São diversas camadas da mesma trama, o que é enriquecedor para uma atriz. A gente sabia que tinha uma responsabilidade, mas também tinha liberdade para explorar a história como quisesse.

    Vocês têm três histórias semelhantes, porém em tempos históricos distintos. De que maneira elas se aproximam, e em que se diferem?

    António Ferreira: Em termos narrativos, as três histórias têm princípio, meio e fim, e funcionam de modo autônomo. Mas eu queria que, no final, todas fossem uma história só. Exceto por acontecimentos essenciais, como a morte de Inês, eu não queria que os conflitos se repetissem. Cada época tem suas leis, suas regras sociais. Vemos algo na Idade Média, corta, e aquilo mostrado 600 anos depois parece completar a cena anterior. Eu desejava que no final o espectador tivesse a impressão de ver uma única história espalhada ao longo de 600, 700 anos. Poderíamos desmontá-las, mas gosto que funcionem como um todo.

    Joana de Verona: São histórias que acontecem em todos os tempos, e talvez ao mesmo tempo. Foi ótimo fazer a mesma personagem em períodos tão distintos. Embora seja a mesma alma, você pode moldá-la a cada época de acordo com a necessidade. É um belo desafio.

    António Ferreira: Algo inovador no romance "A Trança de Inês" é pegar uma obra muito batida e imortalizá-la. Se há reencarnação, então Inês nunca morre, e pode continuar acontecendo. Um dos ganhos é tornar este amor vivo. Se ele acontece em três épocas, poderia acontecer em quatro, cinco, seis. Este amor se abre novamente.

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    Você mistura muitos gêneros nas três histórias. Como vê a combinação de tons?

    António Ferreira: Eu costumo falar que este filme é um épico contemporâneo. Ele tem o aspecto épico da Idade Média, com esse thriller dos dias presentes. Cada época pedia um estilo diferente, e tentei manter uma coerência entre cada época. Nosso método de trabalho era livre: eu não faço storyboard, e não sei exatamente como vou filmar cada cena antes da hora. Eu chegava na locação, ensaiava com os atores e então a gente experimentava, decidindo se seria um plano-sequência, ou de outra maneira. Além disso, sempre faço um master, gosto de cobrir a cena inteira, o que também ajuda os atores. É um processo em que todas as partes influenciam, o que dá organicidade do resultado. Os estilos não foram tão conscientes, mas quando estávamos numa igreja, por exemplo, era natural abrir mais os planos, captar mais daquele ambiente.

    Joana de Verona: Por exemplo, a minha participação no filme começou com a cena no hospital psiquiátrico, no tempo presente. É o início do filme. A Inês aparece apenas para Pedro, numa imagem etérea, como uma fumaça poética dos desejos dele. Nada estava planejado. Quando chegamos ao local, começamos a experimentar várias formas. Eu queria propor algo freestyle, mas fiquei tímida por ser o primeiro dia. Depois de um tempo propus o freestyle, e o António aceitou na hora. Assim fizemos. As propostas surgiam e ele aceitava tudo o que a gente fazia.

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    Por atravessar toda a História de Portugal, de que maneira acredita que essa trama medieval reflita o Portugal de hoje?

    António Ferreira: Portugal é o que é hoje porque temos as fronteiras mais antigas da Europa, são mais de mil anos. Passamos pela Inquisição, pelo momento em que os reis matavam-se uns aos outros. Se hoje somos um país tranquilo, talvez seja por já termos passado por tudo isso. Eu me pergunto se o Brasil não está em vias de eleger um sujeito perigoso por vontade de seguir o modelo europeu - mas aquele da Idade Média. Os portugueses são pacíficos porque já viveram muita porrada, muitas guerras. Já o Brasil tem uma história diferente, devido à colonização, e por ser muito mais recente. Eu me pergunto como é possível interpretar o que está acontecendo hoje. Ao invés de xingarmos uns aos outros, precisamos entender porque as pessoas estão tão fartas da política, e porque querem ver o circo pegar fogo. 

    Joana de Verona: Falta memória histórica às pessoas. Meu tio brasileiro foi torturado durante a ditadura, e depois se exilou. Ele sofreu este período na pele, e parece que as pessoas não se lembram disso, embora seja muito recente. As novas gerações não conversam a respeito porque o tema se tornou tabu. Os meus amigos alemães têm vergonha de serem alemães, de certo modo, por conta do nazismo. Em Portugal, sabemos que o processo colonizador foi devastador em muitos aspectos, porque implicou em massacres, além de uma religião e um modo de sociedade forçados aos indígenas pelos portugueses. Algumas pessoas negras de hoje ainda guardam a carta de alforria dos seus avós. Isso é muito recente. Essa opressão persiste na história brasileira, parece que a tortura não acabou - basta ver o que acontece nas ruas. As pessoas estão desesperadas, desesperançadas, intolerantes com a corrupção, mas o medo pode levá-las a alguém que cultiva o ódio.

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