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    Mostra SP 2018: "Aqueles homens tomaram os mesmos riscos e lutaram a mesma luta", diz diretor de O Estado Contra Mandela e os Outros (Entrevista exclusiva)

    Conversamos com Nicolas Champeaux, um dos diretores do documentário exibido em Cannes este ano!

    A 42ª Mostra Internacional de São Paulo integra em sua programação uma homenagem especial ao centenário de Nelson Mandela (1918-2013). Quatro filmes sobre sua vida foram selecionados para diversas sessões - incluindo o ótimo documentário O Estado Contra Mandela e os Outros, que enfatiza as figuras que não estavam por trás de Mandela, mas sim ao lado dele, passando pelos mesmos desafios políticos e, sobretudo, sentenças.

    Tivemos a oportunidade de conversar com um dos diretores do documentário, Nicolas Champeaux, que está em São Paulo para apresentar a obra. Confira o papo:

    O documentário mostra que a história do apartheid não era resumida apenas ao nome de Nelson Mandela. Ele foi a face que representou a luta, mas muitas pessoas ainda podem não ter noção de que ele não estava atuando sozinho. Mostrar essa realidade foi o maior desafio?

    O maior foco sempre foi falar sobre os outros, realmente. E nós temos algo que une todos eles, que é o julgamento. Eles se sentaram no mesmo banco, mesmo sendo de diferentes espaços sociais e políticos. Nós quase chamamos o filme de "Os Outros", diretamente. Mas ao mesmo nós também queríamos contar a história e o importante background deste julgamento. Mas sim, há muitas pessoas que não sabem que haviam mais pessoas nesta luta. Estes mesmos homens tomaram os mesmos riscos, suas famílias também sofreram devido aos seus sacrifícios. Foi a mesma batalha. Eles estavam prestes a morrer e ninguém parecia saber disso. Eles mereciam ser reconhecidos.

    O nome do filme já delimita bem o que as pessoas acham - afinal, quem são os outros? Como se deu a decisão do título?

    O título oficial do julgamento é este mesmo do título, e eu o acho bem irônico porque, de um modo, este nome ajudou Mandela a reforçar seu senso de liderança. Afinal, foi ele quem deu um discurso de quase 3 horas durante o julgamento em nome de todos, na frente de repórteres e embaixadores - que poderiam conhecer ele na época, mas não tinham ideia do quão articulado ele era em sua oratória. E, por destacá-lo até no nome do caso e chamando os outros homens simplesmente de "outros" (o que foi desrespeitoso), o próprio Apartheid meio que lhe auxiliou a fortalecer sua liderança.

    Como foi o processo de selecionar o material de pesquisa?

    O arquivo do julgamento tinha 256 horas ao todo. Eu e Gilles Porte (também diretor do filme) tivemos que ouvir basicamente tudo. Por todo o arquivo ser basicamente apenas formado por áudio, foi um certo desafio. Mas do ponto de vista de um criador, boas coisas saem de desafios. Se algo for um pouco mais complicado você precisa encontrar boas soluções artísticas e editoriais. Para nós, o desafio não foi um desafio desde o princípio; foi algo que nos ajudou a fazer cinema, a sermos criativos do ponto de vista estético.

    Decidimos fazer as animações porque, no meio dos arquivos, haviam muitos desenhos feitos pela esposa de um dos acusados. Sua mulher realmente desenhou algumas imagens do julgamento e, quando as encontramos, pensamos em usá-las para dar autenticidade às animações. O interessante também é que o tom ameaçador e obscuro dos desenhos nunca estiveram "em competição" com as vozes do juiz ou advogados, nem com a música. Os desenhos apenas nos ajudam a ouvir os arquivos e ilustrar metaforicamente, sem distrair o espectador.

    E as entrevistas com os homens julgados? Foi emocionante ouvir suas histórias pessoalmente?

    Nós tentamos ser profissionais e evitar que as emoções entrassem no caminho. O que foi emocionante foi ver que eles queriam continuar conosco mesmo após os entrevistarmos durante 4, 5 horas. E eu estou falando de pessoas com 93 anos ou mais. Isto foi muito bonito, pois no final do dia nós sabíamos que havíamos formado uma amizade especial com aqueles homens que fizeram história. Eles são heróis, de certa forma.

    Winnie Mandela possui uma voz no filme. Quão importante vocês consideraram colocá-la nele (assim como outras testemunhas do apartheid) e proporcionar uma visão mais ampla do que aconteceu?

    Winnie não estava no roteiro inicialmente, assim como Sylvia Neame, esposa do acusado Nº 5, e o filho do promotor Percy Yutar, David. Nós realmente queríamos envolver os familiares para nos ajudar a dar mais um ponto de vista. Estas pessoas sofreram, pois não é normal ver seu pai no tribunal quando se tem oito anos, vendo ele se arriscar a uma sentença de morte. Não é normal para uma esposa também. A própria Winnie nos disse que a maneira mais fácil de ver Mandela era no tribunal. Pensando nisso, eu refleti durante o desenvolvimento do filme que, quando você se devota a uma causa durante toda a vida e faz sacrifícios em nome dos outros, mesmo que por uma causa nobre, de certa forma você também é um pouco egoísta. Afinal, se você é pego, sua família não o verá mais. Os homens fizeram esta decisão, mas ela não foi feita pelas crianças.

    Por isso eu acho muito importante ter a presença de pessoas como Winnie Mandela - que, inclusive deu a última entrevista de sua vida para o nosso documentário. Ela é um personagem controverso, mas extremamente necessário. Ela nunca quis se sobressair, mesmo tendo feito muitas coisas. Curiosamente, não entramos em muitos debates e nem recebemos muitas perguntas sobre ela; as pessoas querem saber mais sobre indivíduos que elas não faziam ideia que existiam - como Sylvia Neame, que por sinal atua de maneira importantíssima no filme.

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