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    Better Call Saul: Era uma vez Jimmy McGill... (Crítica da 4ª temporada)

    A queda, ou as últimas horas de um homem bom.

    NOTA: 4,5/5

    Com o emprego recém-conquistado e a boa recuperação perante aos olhos da lei em seu período de suspensão da advocacia, Jimmy McGill (Bob Odenkirk) tem todo os motivos para conquistar o sono dos justos - até mesmo levando em conta a recente tragédia pessoal pela qual passou. Mas isso, é claro, não é o bastante para suprir as necessidades do protagonista da constantemente excelente Better Call Saul: afinal de contas, ele é um animal noturno. E no meio de mais uma madrugada conturbada, vivida do lado de lá da lei, se vai McGill, com um carregamento de celulares da loja de telefones na qual agora atua como gerente para vendê-los a preços superfaturados para criminosos do mais baixo escalão do Novo México.

    É arriscado dizer que jamais vimos o complexo personagem de Odenkirk - que se supera, largando como o favorito para a temporada de premiações do ano que vem - no leito de um poço tão fundo, particularmente após todos os buracos dos quais Saul Goodman teve que sair em Breaking Bad, mas a quarta temporada de Better Call Saul não deixa dúvidas: este é o ponto mais inferior da espiral de corrupção na qual Jimmy embarca. Daqui para frente, não haverá salvação.

    Estes mais recentes episódios do drama assinado pela dupla Vince GilliganPeter Gould apresentam o mais alto nível do seriado até então, chutando portas a cada capítulo ao manter a sensação devastadora do encerramento niilista da terceira temporada; ampliando as cenas de ação, suspense e violência ao se aproximar ainda mais do espaço-temporal da clássica Breaking Bad; e, é claro, aprofundando o foco naquele que é o agora principal núcleo dramático de Better Call Saul: a relação “panela de pressão” entre McGill e Kim Wexler (Rhea Seehorn, melhor do que nunca no papel, revelando nuances e tonalidades inéditas).

    Sem a presença de Chuck (Michael McKean) pairando como uma sombra sobre cada passo trilhado por Jimmy, o posto de antagonista de Better Call Saul ficou vago - e é a muito merecida promoção de Kim ao status de coprotagonista desta empreitada que faz com que a quarta temporada supere até mesmo o altíssimo rendimento dos conjuntos de episódios anteriores.

    Por mais que fossem irmãos, Chuck e Jimmy encaravam-se mais como rivais do que qualquer outra coisa, fomentando uma relação nociva apenas ocasionalmente pontuada por doses contidas de um frágil afeto fraternal. A admiração que o mais novo nutria pelo mais velho acabou metaformoseando-se em uma espécie de ressentimento profundo, evidenciado pela constante batalha travada pelos dois pelo poder e pelo controle das narrativas. Com Kim, no entanto, a banda toca de uma forma completamente diferente. Como interesse romântico do protagonista, ela é ao mesmo tempo uma aliada e uma força independente e antagônica.

    Essencialmente, Kim precisa corromper a si mesma - ou seja, manchar sua retidão moral, dimensão crucial da talentosa e correta advogada que é - para amar e apoiar Jimmy. Portanto, quando ela permanece na estrada ética, praticando a lei da maneira justa, os dois se distanciam, mesmo que Wexler permaneça resoluta em sua cruzada para retirar o companheiro de sua tácita decadência. Ver a quarta temporada de Better Call Saul é, acima de tudo, assistir à triste e lenta dissolução de um relacionamento cuja única chance de redenção é, paradoxalmente, recorrer à criminalidade.

    Realizado por Deborah Chow (Jessica Jones), sétimo episódio, "Algo Estúpido", traz um criativo prólogo - mais um prelúdio de uma série baseada em prelúdios geniais - que divide a tela (foto acima) para avançar temporalmente a narrativa sem deixar de destrinchar a apartação do casal, separando os dois espacialmente dentro do mesmo ambiente. Da metade da temporada para frente, Better Call Saul desdobra-se entre os altos e baixos enfrentados por Jimmy e Kim.

    Assim, enquanto é certamente divertido ver o imensamente complexo trambique concebido pela dupla para livrar Huell Babineaux (Lavell Crawford) da prisão no engenhoso oitavo capítulo, “Coushatta” - que envolve ao menos um milhão de cartas forjadas, sotaques sulistas macarrônicos e hilárias viagens ao redor dos Estados Unidos sob a direção de Jim McKay (Mr. Robot) -, a natural progressão trágica do pacto desemboca no amargo e avassalador "Vencedor", capítulo final da quarta temporada.

    É nesta fantasmagórica conclusão - cujo prológo é agraciado pelo "retorno" de Chuck e por uma inquietante versão a capella de "The Winner Takes It All", clássico do ABBA -, que Better Call Saul extrai o melhor de suas dicotomias. Expressas nos enquadramentos aprisionantes e nos brilhantes jogos de luz e sombras - cada vez mais marcadas sobre a face de Jimmy, especialmente na violência psicológica do sexto capítulo, "Piñata", dirigido por Andrew Stanton (Wall-E) -, as dualidades fazem Better Call Saul rodar como uma locomotiva sem freio, opondo potências e entregando embates entre Yins e Yangs a cada esquina.

    E, sem dúvidas, não existem simetrias mais dolorosas do que as formadas pelo terno nascimento do romance entre Jimmy e Kim e sua inevitável conclusão angustiante; e pelo testemunho da jornada de declínio do protagonista, cujo destino é sempre mais poderoso do que suas escolhas: ora odiamos Jimmy por não conseguir escapar de si mesmo, ora nos alegramos por seus efêmeros progressos - e, ocasionalmente, é claro, pelo êxito de suas armações e tramoias.

    Outra manifestação das dicotomias internas de Better Call Saul surge evidentemente na trama auxiliar, cuja Guerra Fria não poderia ser mais distante do drama de Jimmy e Kim - e é ótimo que as temáticas sejam tão díspares. Por mais que o núcleo paralelo, encabeçado por Mike (Jonathan Banks), Gus Fring (Giancarlo Esposito) e Nacho (Michael Mando), opere mais como uma ponte de ligação entre esta série e os seus eventos futuros, a quarta temporada de Better Call Saul aprofunda pacientemente as personalidades dos três, camada após camada.

    Com este estudo de personagens - que, para os partidários das cenas de ação da obra de Gilligan será empolgante, cortesia dos fuzis e revólveres empunhados pelos brutais Irmãos Salamanca (Daniel e Luis Moncada) -, Better Call Saul entreabre uma porta por onde os fãs podem espiar a genialidade de Gilligan em plena atividade, observando as minúcias da amplitude estrutural que o roteirista precisou arquitetar para edificar o imenso universo narrativo de Breaking Bad. É nesta temporada que assistimos, por exemplo, à deterioração da relação entre Fring e Hector Salamanca (Mark Margolis); à gênese do “fatal” sino do homicida traficante mexicano, uma campainha cuja história íntima é ligada, não por acaso, a um incêndio do passado; e à construção das primeiras pedras fundamentais do laboratório de Fring.

    Como de costume, o círculo se completa no fim. Na única citação à vida de Jimmy pós-Breaking Bad, no prelúdio do primeiro capítulo desta quarta temporada, "Fumaça", vemos as consequências do colapso nervoso sofrido por Gene Takavic. Incomodamente preso à cama do hospital, o gerente da rede de pães doces Cinnabon deseja sair o mais rápido possível de sua internação. Mas, no tenso caminho para a liberdade, encontra uma autoridade - ou uma espécie de autoridade, ao menos: uma recepcionista que demanda seus dados pessoais por questões cadastrais e de seguro.

    Após travar um duro e desconfortável contato com a funcionária do hospital, Jimmy tenta ir embora com tanta pressa que quase esquece sua carteira de identidade. Ainda abalado, embarca em um táxi, cujo motorista de olhar penetrante e desconfiado extrapola todos os níveis de inquietação do ex-advogado. Seria um velho conhecido do passado? Alguém que Jimmy prejudicou por meio de seus complôs megalomaníacos? Ou, enfim, seria o condutor uma espécie de algoz final, enviado para encerrar a vida de Jimmy de uma vez por todas?

    Não importa: as perturbadoras questões jamais são respondidas durante toda a quarta temporada de Better Call Saul. O que é necessário reter deste prológo é que o passado sempre retorna para nos assombrar. Progressivamente atordoado por sua míriade de identidades e as crises provocadas pelas transições de Jimmy para Saul e, posteriormente, para Gene, o personagem de Odenkirk começa a perder seus contornos e a desaparecer diante de nossos olhos.

    No fim das contas, o "Vencedor" é aquele que leva tudo como no hit do ABBA, custe o que custar e jogando da forma que for necessária. E Jimmy se esforça, no momento em que finalmente assume a persona de Saul Goodman, para decretar que sua maré de azar terminou, para atestar que voltará a ser o senhor de sua sorte. "Está tudo certo, cara" - ou "It's all good, man" -, ele diz.

    Mas no exato instante em que Jimmy e a câmera se afastam de Kim, nos deixando apenas com a figura cada vez menor da advogada e seu rosto desolado em um dos corredores do fórum do Novo México, lembramos da frase que ela mesma citou: "Vamos saber quando acontecer", originalmente proferida pelo Juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, Potter Stewart. E assim que ouvimos as derradeiras palavras de Jimmy na ousada e contundente quarta temporada de Better Call Saul, temos a certeza de que não, nada está bem: o fim está mais próximo do que nunca.

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