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    Djon África: Diretor e ator falam sobre história real que atravessa Portugal e Cabo Verde (Exclusivo)

    Conversamos com João Miller Guerra e Miguel Morales sobre a ficção na fronteira do documentário.

    Nesta semana, chega aos cinemas um encontro entre os cinemas português, brasileiro e cabo-verdiano: Djon África, dirigido por João Miller Guerra e Filipa Reis. Os cineastas retratam a história real de Miguel Moreira, que interpreta a si mesmo na jornada da Europa à África, onde o jovem procura pelo pai que jamais conheceu. Neste percurso, descobre suas verdadeiras raízes.

    A trajetória dos diretores, acostumados ao documentário, exerce forte impacto no drama, filmado com um realismo impressionante. Os diálogos, os gestos e ações são transmitidos com empatia, porém sem grande intervençãi, enquanto a história trata de demonstrar diferenças e afinidades culturais.

    De passagem pelo Brasil, Guerra e Moreira conversaram com o AdoroCinema sobre Djon África:

    Um dos temas centrais do filme diz respeito às identidades, sejam elas africanas, negras, lusófonas.

    Miguel Moreira: Para mim, a questão é a seguinte: vejo-me como africano, apesar de ter nascido em outro país. Não digo que sou negro, apenas que sou africano. Mas os descendentes costumam dizer que são outra coisa antes de dizerem que são africanos.

    João Miller Guerra: Bom, eu e a Filipa somos brancos e europeus. Nós vivemos estes anos com o Miguel e seus amigos que nos diziam, brincando: "Vocês, brancos, são complicados!". Não é tudo igual, mas para nós era importante, desde o primeiro filme que fizemos com Miguel, que se percebesse como esta identidade africana, que no fundo é europeia e portuguesa, está errada. No documentário que fizemos com o Miguel, abordamos a questão da nacionalidade, porque se trata de um cara que nasce em Portugal, tem passaporte cabo-verdiano, mas não tem a nacionalidade portuguesa. Mas quem nasce em Portugal é o quê, afinal? 

    Esta questão continua como pano de fundo neste filme. É alguém que nasce em Portugal, vive num gueto sem ser tratado como europeu, e com oportunidades negadas por não ter a nacionalidade - ou seja, ele não pode estudar nem trabalhar legalmente. Existem muitas pessoas em Portugal na mesma situação de Miguel. Assim, a sensação de pertencimento se estabelece com o bairro. Estes moradores sentem que pertencem a Cabo Verde, mesmo sem terem jamais ido lá. Mas têm a herança africana passada por cabo-verdianos, como a avó de Miguel, que lhe transmitiram essa identidade. 

    Era importante para nós dois, neste primeiro filme de ficção, que se projetasse uma ideia de ele próprio na África. Com o motivo da procura pelo pai - que é um fator real na vida de Miguel -, a ficção abordaria a busca dele próprio, de suas raízes.

    O projeto de ficção foi um desafio maior em relação ao filme anterior?

    Miguel Moreira: Não. Eu só sei interpretar a mim mesmo, então só tenho que entrar e não olhar para a câmera. Só foi difícil contracenar com outras pessoas que também não são atores profissionais, e que fizeram um papel melhor do que eu!

    João Miller Guerra: Nós sempre tínhamos uma ideia, que era passada ao Miguel, e ele já conhecia a história inteira. Os outros atores não sabiam do filme todo, apenas tinham uma noção geral. A gente só pedia a eles que as conversas incluíssem determinados temas, então deixava a cena rolar. Nesse filme, especificamente, teve algo mais complicado por não ser documentário, então não era baseado apenas na experiência dele. Neste projeto, às vezes a gente propunha algo e o Miguel respondia: "Eu não reagiria assim", "Eu agiria de outra maneira". Sempre aceitamos as sugestões dele para o filme ficar mais verdadeiro. Na passagem para a ficção, pela primeira vez acreditamos na possibilidade de ter frases e reações criadas por nós, e interpretadas pelo Miguel.

    Os personagens são sempre filmados à distância. Vocês evitam os closes, e nunca invadem o espaço deles.

    João Miller Guerra: Isso vem da forma como fizemos nossos filmes anteriores. Embora os nossos documentários também tivessem um pouco da linguagem da ficção, a ideia vem da vontade de não intervir nas situações. Quando você encena e pede para a pessoa repetir a ação, ou quando faz o close-up, sem um ator profissional, dificilmente obtém um resultado igual. Então essa aparência vem de um cinema mais observacional, ao invés de interventivo. A distância também é força das circunstâncias. Mesmo assim, existiram alguns momentos em que nos aproximamos um pouco mais, e testamos mais de uma maneira para filmar cada cena.

    A narrativa promete uma jornada de procura pelo pai, mas a história reserva muitas surpresas, inclusive na resolução deste conflito.

    João Miller Guerra: O filme também possui uma parte real, em que de fato procuramos pelo pai de Miguel. Abordar a história do Miguel, mencionar a falta do pai e sequer tentar encontrá-lo nem abordar a resolução disso seria algo inconcebível para nós. Então a produção começou a busca com os poucos dados que tinha à disposição - os mesmos mostrados na narrativa, aliás. Encontramos a família do pai e o Miguel teve contato com eles, mas sabíamos que não seria interessante filmar este encontro, para não transformar o filme num reality show. A gente também não queria ter um fio aberto, deixando a possibilidade do encontro em aberto, como se não fosse importante. Por isso, filmamos várias hipóteses de fim. Preferimos deixar uma dúvida ao espectador no final: será o Miguel capaz de cortar com a ideia de um pai cabo-verdiano e tocará a sua vida? Ficará ele na África, ou retornará para a Europa?

    Miguel Moreira: Foi engraçado porque o homem que aparece no filme é de fato parecido comigo, mas não é meu pai. Fiquei pensando como seria se eu tivesse ido para lá sozinho, sem nenhuma pista. Se eu encontrasse esse jovem, como eu reagiria na realidade? Não sei. Foi engraçado ver outra pessoa parecida comigo interpretando meu pai.

    João Miller Guerra: Com certeza, um momento muito bom foi conhecer toda essa família do pai.

    Miguel Moreira: De fato, isso me ajudou a compreender muitas coisas sobre meu modo de reagir a certas situações. Eles reagem todos da mesma maneira que eu.

    Djon África já foi apresentado em Portugal e Cabo Verde? Provocou reações distintas?

    João Miller Guerra: O filme vai ser mostrado em Portugal agora, finalmente. Ele estreia primeiro no Brasil, depois do circuito dos festivais internacionais. Em Portugal, vai ser no mês de novembro, e chega quase ao mesmo tempo em Cabo Verde, num festival da Praia. Eles convidaram Djon África para abrir o festival. Então vamos mostrar lá e tentar devolver o filme à população, porque este é o local onde filmamos. Depois vamos levar às outras duas ilhas onde filmamos, para que todas as pessoas envolvidas consigam ver o filme. Nós filmamos em todos os locais chamados Tarrafal, para criar essa ideia de união.

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