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    Festival de Brasília 2018: "O audiovisual brasileiro espelha o silenciamento das pessoas negras", afirma Grace Passô, de Temporada (Exclusivo)

    A drama André Novais Oliveira traz um olhar afetuoso à periferia.

    Destaque do 51º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o longa-metragem mineiro Temporada, dirigido por André Novais Oliveira, acompanha a história de Juliana (Grace Passô), que acaba de se mudar para Contagem devido a um novo emprego. Mas ela deixou o marido para trás, e esconde um trauma recente.

    O drama traz um olhar simples e carinhoso às pessoas e espaços das periferias, com muito bom humor. Além disso, confere protagonismo a mulheres negras. Este foi o nosso filme preferido de todo o festival, e Grace Passô surge como uma das favoritas ao prêmio de melhor atriz. Leia a nossa crítica.

    O AdoroCinema conversou com a atriz sobre o projeto:

    Juliana tem um trabalho muito específico na prefeitura, combatendo endemias. Como se aproximou desta personagem?

    Grace Passô: Eu tive a sorte de trabalhar a vida toda com o teatro, mas antes disso, durante a faculdade de letras, fiz uma pesquisa em que precisava entrar na casa das pessoas para fazer uma espécie de censo. Isso durou 15 dias, mas me marcou muito. Algumas experiências que tive mais tarde, com peças de teatro que escrevi, foram marcadas por este trabalho curto. Cada casa é um universo diferente, e entrar na casa das pessoas é ter acesso a uma intimidade absurda. 

    Quando o André me convidou para fazer o Temporada e me mostrou o roteiro, eu imediatamente me lembrei dessa experiência. Para mim, o trabalho de combate à dengue é muito semelhante. Ela está em processo de transformação, e isso é visível através do contato que tem com outras pessoas. A cada nova casa em que entra, é uma nova vida que descobre. É um olhar sobre as pessoas, uma situação muito rica.

    A personagem está num momento de ruptura, mas conhecemos apenas alguns elementos do passado dela. Você construiu uma história pregressa da Juliana?

    Grace Passô: Não. Ela já começa o filme como estrangeira, chegando a uma nova cidade, uma nova casa. No início, o roteiro nos dá algumas poucas informações. Ele pincela uma relação distante com o pai, e cita que ela é casada. Mas eu me ative a isso, não desenhei nada para além do que estava no roteiro.

    Na época, eu tinha uma agenda muito apertada para os ensaios, mas ensaiamos cerca de 15 dias para as filmagens. O André é muito sensível e objetivo, ela combina essas duas qualidades de maneira rara. Desde o início, ele se preocupou em me mostrar o objetivo de cada cena, tanto para a trama em geral, quanto os objetivos de linguagem. Por exemplo, ele me mostrou a referência de uma cena de Assim Falou o Amor (1971), de John Cassavetes, que é linda. Ele se preocupou em nos aproximar deste universo.

    O André despe os atores de vaidade, até chegar ao um naturalismo impressionante. Como foi o processo com você?

    Grace Passô: Já começa com o ator sem maquiagem. Pode parecer pouco, mas não é: isso dita a relação que ele busca entre o ator e a câmera, sem filtros. Ele é uma pessoa que tira filtros entre o corpo do ator e a imagem, e então vai no osso das situações.

    Quando eu digo que ele é objetivo, quero dizer que não deixa os atores se iludirem. Ele tem uma relação obsessiva pelo que é necessário, essencial. Por isso é um trabalho poético, que busca as sínteses.

    Temporada foi exibido em Brasília entre vários políticos de denúncia e confrontação. Mas a política neste filme é diferente, não?

    Grace Passô: Tudo nele é político, a começar pelo modo de produção. A gente fala muito da política enquanto tema, mas às vezes isso existe dentro de uma estrutura de produção contraditória. O cinema tem uma função social. Por exemplo, na região de Contagem, onde filmamos, a câmera vira caneta, de tão natural que é a sua presença. Ela faz parte do cotidiano da comunidade, daquele recorte territorial.

    O set de cinema passa a fazer parte daquele lugar, a começar pelo lugar de trabalho: a maior parte das pessoas envolvidas em todas as funções são dali: os motoristas, cozinheiros, atores, figurantes. O cinema é de fato um modo de agir com os seus, não é algo para ser admirado pelos seus. Para mim, isso já constitui uma atitude política. O André trabalhou com os agentes da dengue de verdade. As histórias que ele conta e que cria na linguagem são uma extensão direta da vida existente ali. Ele não buscou atores para representarem essas pessoas, ele chamou as pessoas para representarem a si mesmas. Isso é um gesto político.

    Enquanto temática, o filme lança luz no cidadão comum. Isso para mim também é muito político no sentido em que espelha a maioria das gentes brasileiras. É o tipo de trabalho que a gente tem no Brasil, a nossa figura de um cidadão comum, que não enfrenta cataclismos, maremotos. Nada espetacular afeta essas pessoas, é o cotidiano comum da sociedade brasileira. Esta mirada é uma opção política: criar poesia a partir dos corpos comuns.

    Além disso, o filme retrata um dia de afeto. Logicamente, existem violências em volta, porque o Brasil é um país historicamente violento. Além disso, estamos vivendo um período de violência que se camufla de diversas formas, com arma na mão ou não, e dentro da política, dos discursos. Estamos cercados de violência - é muito duro dizer isso, mas estamos num país construído a partir do estupro. Talvez a gente tenha sobrevivido através de pequenos atos de afeto. Nossa resistência ocorreu a partir de pequenos atos de afeto, e isso se dá na convivência. O afeto é um gesto político. 

    Como você percebe, em quantidade e qualidade, a representatividade de mulheres negras no audiovisual hoje?

    Grace Passô: A confusão dos discursos e das ações das militâncias negras de modo geral vem construindo um campo fértil para as existências negras. Eu vejo muitas coisas acontecendo em conversas com pessoas negras que produzem arte. Isso tem acontecido em maior quantidade e qualidade. A qualidade está intimamente ligada à oportunidade de experimentação e de estrutura para isso. Através de modos de organização de comunidades negras no campo da arte, a representatividade vem se alargando.

    Isso parte da iniciativa dos negros e negras brasileiros. Falava-se muito dos movimentos negros antigamente, e hoje se fala também dos negros em movimento. Paralelamente, existe um cinema brasileiro baseado em estereótipos da negritude, feito especialmente por pessoas que não são negras, mas buscam entender como se inserem nesses discursos. Os pensamentos das militâncias negras movem a sociedade toda, então percebo tentativas de entendimento que ainda tratam o negro e a negra como uma coisa só, em geral muito subalterizados, fetichizados.

    O audiovisual ainda manca muito nesse aspecto, e está defasado em relação ao que se produz intelectualmente de reflexão sobre o racismo no Brasil. Vejo diretores perdidos. Recebo solicitações para ler roteiros de pessoas interessadas em construir discursos condizentes com determinados pensamentos, mas perdidos sobre como fazer isso. O audiovisual brasileiro espelha o silenciamento das pessoas negras ao longo da nossa história. Esse silenciamento gerou uma violência grande nas subjetividades negras, e uma ignorância grande nas pessoas não negras. A partir do momento que temos a perspectiva do negro sobre ele, a situação muda.

    O mesmo vale para a produção das mulheres em relação ao pensamento feminista, que é totalmente diferente da perspectiva dos homens. Eu ainda me espanto com essa produção cinematográfica. Talvez cinco anos atrás, a gente nem mesmo estivesse conversando sobre isso, nem citasse a palavra racismo, porque era tabu. Esse espaço conquistado por negras e negros é muito recente.

    A falta de negros no audiovisual é percebida há muito tempo, mas a questão é de quem percebe, e quem tem as suas reivindicações ouvidas, ou como são ouvidas. As vozes são estigmatizadas: basta ver a ideia da feminista como chata, dos negros e negras militantes como chatos, então são colocados como detalhes. Isso é assustador quando se percebe que o Brasil é negro em sua dimensão inteira. 

    O cinema tem uma importância muito grande na reflexão sobre o racismo no Brasil, não apenas de temáticas diretas, mas também o campo simbólico que ele cria na imagem. Talvez por ser artista, acredito que essa seja uma das coisas mais importantes na construção de uma existência: o lugar em que você se vê representado. O pensamento negritude versus imagem e representação talvez seja um dos assuntos mais importantes deste país negro em sua constituição. Pensar isso através da linguagem audiovisual é de uma importância fundamental.

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