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    Mormaço: Diretora Marina Meliande explica a combinação de fatos reais e drama fantástico (Entrevista exclusiva)

    Especulação imobiliária, Vila Autódromo, uma enfermidade misteriosa e muito Rio de Janeiro na tela.

    Após estreia mundial no Festival de Roterdã, Mormaço chegou ao Brasil na competição do Festival de Gramado e, na Serra Gaúcha, o AdoroCinema teve a oportunidade de conversar com a diretora Marina Meliande sobre seu novo filme. Primeiro longa-metragem solo da diretora, que codirigiu A AlegriaA Fuga da Mulher Gorila com Felipe Bragança, Mormaço mistura fatos reais e fantasia numa trama incômoda que tem como cenário um Rio de Janeiro abafado, em ruínas e desumano. A protagonista é a defensora pública Ana (Marina Provenzzano), que, às vésperas dos Jogos Olímpicos, tenta impedir a remoção dos moradores da Vila Autódromo, ao mesmo tempo em que precisa lidar com misteriosas marcas em seu corpo e o fim do prédio em que vive. Leia a crítica.

    AdoroCinema: De que forma surgiu a ideia do filme? No argumento veio primeiro a questão da Vila Autódromo, a cidade ou a transformação fantástica desta mulher?

    Marina Meliande: As primeiras ideias, as primeiras versões do roteiro, começaram a ser escritas em 2012. Era outro Rio de Janeiro, mas que já apontava para o que iria acontecer, então acho que a vontade do filme surgiu muito a partir do momento em que o Rio foi escolhido como sede tanto da Copa, quanto das Olimpíadas. Eu sou carioca, vivi grande parte da minha vida no Rio, tenho um afeto grande pela cidade, todo meu trabalho artístico tem relação com ela, e comecei a me sentir muito incomodada com esse tipo de política pública excludente, de cima para baixo, arbitrária, sem nenhum tipo de consulta pública ou debate. Comecei a ver que as pessoas estavam se sentindo expulsas e eu, de alguma forma, também. Os preços subiram e começou a virar uma cidade muito difícil de morar, então eu queria falar muito desse incômodo, dessa sensação de não-pertencimento de um espaço do qual fazemos parte desde a origem.

    A doença surgiu porque eu queria falar sobre uma tensão e um acúmulo que gerasse uma doença, queria que um corpo começasse a responder a esse incômodo de alguma forma, talvez até antes de que ela se desse conta racionalmente do quão incomodada estava. Ainda era uma comunidade fictícia no roteiro e num primeiro momento eu até pensei que fosse o Morro da Providência, porque eu queria que tivesse uma relação com o centro da cidade, que também estava se transformando muito, mas no processo de pesquisa tive contato com o pessoal da Vila Autódromo e fiquei completamente apaixonada por eles, pelo exemplo de resistência. Eram lideranças principalmente femininas, que tinham estratégias de organização e de manifestação muito inteligentes, muito impressionantes, com poucos recursos. Falei: "Acho que esse filme só faz sentido com alguma coisa que exista de verdade, sendo um exemplo para esse assunto e para essa cidade, e que de alguma forma eu possa, com ele, fazer com que mais pessoas saibam da existência dessa luta e que isso é verdade".

    AC: O filme é bem carioca e estreou mundialmente no Festival de Roterdã. Como foi a experiência com audiências que não conhecem a situação da capital fluminense tão bem? As pessoas identificaram os limites entre realidade e ficção?

    MM: O filme se comunica até muito bem com o exterior, as pessoas ficaram muito curiosas em saber o que tinha acontecido, como a Vila Autódromo estava hoje... O diretor do festival holandês sempre falava que a mistura do cinema de gênero, de autor, com cinema político, é a grande força do filme. Ele dizia: “A gente sabe o que é ser removido. Não que a gente viva isso, mas a gente sabe que é um processo que acontece em várias cidades do mundo, com todas em que passam as Olimpíadas; é um processo de gentrificação mundial, então a gente consegue se identificar e se impressionar, tendo a curiosidade de saber mais sobre o assunto”. Então ele [o filme] abre uma oportunidade de discussão que é muito interessante, de poder contar mais e falar sobre o que está acontecendo no Brasil, politicamente inclusive, de forma mais ampla. Não existe nenhum tipo de dificuldade de compreensão da situação. Algumas pessoas ficam muito impressionadas pela forma como a parte documental está integrada, mas elas conseguem perceber que têm pessoas reais ali. São poucos que acharam que era tudo ficção.

    AC: E essa integração com a Vila Autódromo, como as pessoas de lá reagiram à sua proposta e como a Sandra, moradora local, acabou entrando no projeto como atriz?

    MM: Tinha essa personagem que era da comunidade, e quando pisei na Vila Autódromo falei: “Nossa, seria tão legal que alguém daqui pudesse fazer esse papel...”. Conversando com a Sandra, como quem não quer nada, ela mencionou que já tinha feito algumas peças de teatro, então a chamei para um teste. Ela adorou o roteiro, mas eu tinha a preocupação dela não achar que tinha a ver com o que estava vivendo, pelo lado fantástico. Mas muito pelo contrário, ela disse que foi superemocionante essa ideia, porque estava lidando o tempo todo com paredes sendo destruídas quase como folhas de papel e ver uma personagem que de alguma forma se transforma em algo mais concreto da cidade para ela foi uma subversão superinteressante.

    AC: Agora sobre essa parte mais fantástica, sobre a transformação física da Ana, como você idealizava? Como você chegou no resultado que queria, especialmente aquele som perturbador, aquela textura?

    MM: Eu tinha essa ideia da pequena mancha que parece que não é nada, mas vai tomando conta do corpo. O susto da doença que de repente tem uma progressão rápida. Eu queria que tivesse uma relação com o espaço e com o mofo, que tem muito a ver com o Rio; como uma infiltração, como paredes que são úmidas; e junto com a parte política eu queria criar essa sensação do sufocamento. Além da sensação térmica tem esse acúmulo, essa dificuldade de respirar. A doença originalmente eu queria que fosse um pouco realista e depois fosse para o fantástico. Eu gosto dessa noção da carcaça, da pele que vai ficando dura, uma camada que vai protegendo e virando quase que um escudo, como uma resistência desse corpo. Tem essa ideia da pele que está ali exposta para absolver vários elementos do entorno dela, e a propagação da doença é isso, vai em direção ao horror.

    AC: E você vê realmente o filme como um horror?

    MM: Não, eu vejo como um filme fantástico com elementos de suspense e um pouco de horror, porque tem a transformação do corpo. Mas eu tenho uma leitura não tão pessimista do final. A doença pode passar para outras pessoas e representar uma resistência maior, então para mim tem um lugar meio da utopia, de apontar para um lugar que a gente ainda não conhece. E também tem a leitura do "Nós estamos todos na merda, são tempos sombrios e é isso".

    AC: Como foi fazer um filme sobre a transformação da cidade com a cidade se transformando? Às vezes algo que você gostaria de filmar poderia não mais estar lá no dia seguinte, imagino.

    MM: Quando a gente estava procurando financiamento, uma das minhas grandes preocupações era essa, o dinheiro demorar muito para sair e perdermos todo o impacto do visual da cidade. Para a explosão da Perimetral usei imagens de arquivo, mas o resto eu consegui filmar. Cheguei na Vila Autódromo no momento de maior impacto e para mim era muito importante não perder esse timing. Filmamos em 2016, meses antes das Olimpíadas, e acho que foi tudo no tempo certo.

    AC: E o que você tem a dizer sobre o controverso critério de pontuação de realizadores adotado e revelado recentemente pela Ancine?

    MM: Têm várias questões acontecendo na Ancine agora e essa pontuação é mais um sinal de que a classe não está sendo ouvida. Temos pouquíssimos espaços de discussão lá dentro e algumas decisões estão sendo tomadas de forma muito arbitrárias. Eu não estou brigando pelo meu. Quando penso em política pública hoje em dia, eu penso em como uma pessoa que está começando, no primeiro curta, vai conseguir fazer o primeiro longa. É difícil, bem mais difícil do que quando eu comecei a fazer cinema. Meu primeiro longa eu fiz com dinheiro do meu bolso, mas nem todo mundo pode e era um filme muito barato.

    A questão da Ancine hoje é que existe uma tendência a não diversificar o tipo de filme que está sendo feito, uma tendência a concentrar em grandes produtoras já confirmadas em termos de mercado, e a ter como grande referência de avaliação a performance comercial. As possibilidades de filmes autorais e que discutem o Brasil terem financiamento ficam cada vez mais escassas. É realmente triste que de uma hora para outra apareçam várias listas de classificação com critérios que não foram discutidos com ninguém. De repente eu ganho uma nota, uma nota que não sei é suficiente para continuar fazendo cinema, e quem nunca fez filme está zerado. Por que isso?

    Acho que a gente pode criar sim formas de avaliação, só que a gente deve construir isso em conjunto, de forma justa e que todo mundo tenha igual possibilidade de concorrência, ou que a gente no mínimo saiba as regras do jogo. Grande parte das produtoras médias e pequenas no Brasil, que fazem muitos filmes importantes inclusive, estão sendo excluídas da possibilidade de continuar, então a gente está apontando para uma concentração. Espero que isso seja revisto e que a gente mantenha a diversidade de filmes, de produtoras, e que todo mundo possa começar a fazer cinema se tiver um projeto interessante, que a gente não corte a possibilidade artística de ninguém antes de poder dar chance para um projeto. O Fundo Setorial é muito grande, tem muito dinheiro, e podia estar sendo pensado de maneira mais generosa.

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