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    Johnny Depp e James Gunn, as novas dores de cabeça da Disney (Análise)

    Como dois trunfos da gigante do entretenimento se tornaram contratempos infernais para o estúdio.

    Fundada em 1923, ainda sob o título de “Cartoon Studio”, a Disney sempre se posicionou como a líder no segmento do entretenimento familiar. Mesmo quando o cérebro por trás do império faleceu, deixando um legado pesado demais para os ombros de seus sucessores, o estúdio soube dar a volta por cima e afastou-se do abismo da falência ao apostar nas produções voltadas para os Quatro Quadrantes. Não importa se você é um homem ou uma mulher, uma criança ou um idoso: nunca faltará uma obra da Disney para conquistar o público mais amplo possível - ainda que o estúdio só tenha começado a prestar atenção nas minorias recentemente, mas isso é assunto para outra hora.

    Entretanto, essa ligação tão forte com os espectadores, especialmente infantis, agrava todo e qualquer escândalo que o alto escalão da companhia não consiga conter. E, talvez também por terem sido poucos os casos polêmicos envolvendo a Disney durante os anos, que a repercussão da demissão de James Gunndesligado do comando de Guardiões da Galáxia Vol. 3 por causa de uma série de tuítes ofensivos, publicados há uma década - continue ecoando de forma tão profunda. Mas como se não bastasse o imbróglio da Marvel, a Disney decidiu colocar os pés em águas ainda mais turvas com a possível pré-produção de Piratas do Caribe 6.

    Allison Buck

    Não, ainda que seja preocupante, o real problema em torno do rumor não é a insistência incongruente do estúdio com uma franquia zumbi que não parece produzir outro resultado no público senão o de uma fadiga semelhante à acarretada em um atleta após participar de uma maratona. A questão, de fato, é que o estúdio está considerando dar sequência a uma saga estrelada por um astro dos mais controversos: Johnny Depp, acusado de violência doméstica contra a ex-esposa, Amber Heard; e de ter agredido um produtor no set de gravações de City of Lies, que teve sua estreia misteriosamente adiada por tempo indeterminado.

    Aqui só existem duas opções: ou a Disney nega o rumor e encerra a série de filmes de Jack Sparrow, um de seus personagens mais influentes da última década, ou dá sinal verde. Não existe um cenário - ao menos não um viável - em que o estúdio siga em frente com a franquia Piratas do Caribe sem a sua estrela. Se a saga já apresenta sinais de cansaço inevitáveis, como os longas de piratas e bucaneiros da produtora funcionariam sem Depp? Virtualmente impossível. Assim, ou o assunto morre ou a Disney passa uma mensagem ainda mais forte para a indústria que trabalha com dois pesos e duas medidas.

    Kevin Winter

    Aliás, a distinção aberta entre os casos de Depp e Gunn tornou-se patente durante o final de semana da Comic-Con 2018, quando a notícia sobre a demissão do cineasta foi divulgada. Enquanto Gunn era execrado nas redes sociais e se tornava alvo do senador Ted Cruz, ex-candidato à presidência dos Estados Unidos, Depp fazia uma aparição relâmpago no painel da Warner na convenção, levando o público ao delírio. Caracterizado como Grindelwald, o grande antagonista da saga Animais Fantásticos, o ator praticamente aparatou - para utilizar a linguagem do universo criado por J.K. Rowling - em San Diego, sendo aplaudido pela vasta maioria dos presentes no Hall H.

    Agora, a Disney sinaliza, de acordo com os rumores, que aprova a diferença de tratamento concedida aos dois artistas. E, de fato, isto não está errado: as ações de Depp e Gunn merecem, sim, reações díspares. Não há desculpa para o comportamento do cineasta; fazer piada com pedofilia, estupro e AIDS não é humor, simplesmente uma conduta reprovável, ofensiva e, inclusive, criminosa. Por outro lado, como os apoiadores de Gunn - que incluem os astros de Guardiões da Galáxiasignatários de uma carta aberta em defesa do realizador - bem argumentaram, o diretor publicou seus comentários há uma década. De lá para cá, ele teve tempo suficiente para mudar e, segundo seus colegas de trabalho, provou ter se redimido ao se tornar um ser humano melhor, distanciando-se de suas falhas passadas.

    Porém, a Disney decidiu não responder ao clamor popular, agravando até mesmo a tensão com Chris PrattDave Bautista e cia., e cancelou a possibilidade de uma “segunda chance” para Gunn - se a Marvel não conseguir convencer a casa de Mickey Mouse, tudo se mantém como está, mas como reagirá o elenco durante a turnê promocional da vindoura aventura sem o diretor? Ao mesmo tempo, as oportunidades parecem continuar chegando para Depp, envolvido em inúmeras controvérsias e problemas no tribunal. Além de ter sido mantido - e defendido - pela Warner, apesar dos protestos generalizados, o ator permanece com boa parte de seu prestígio intacto. Em tempos do movimento #MeToo, que interrompeu a carreira de inúmeros agressores e abusadores, Depp é protegido e ainda laureado como estrela de franquias valiosas.

    Não se trata de eliminar seus feitos ou de diminuir o impacto que exerceu na indústria; negar ou tentar apagar a relevância histórica de Depp não faz o menor sentido. Necessário é, entretanto, julgar seu caso de maneira cabível, impondo-lhe as sanções corretas - e estas não podem, em hipótese alguma, serem outorgadas pela fogueira vingativa do tribunal da opinião pública. O ator - que fez um acordo com a ex-esposa Amber Heard para evitar o processamento penal, apesar de agora tentar dar o troco acusando-a pelo mesmo crime - não deveria passar incólume, judicialmente e na indústria.

    Sua proteção, aliás, é ainda mais complexa do que parece. Com Depp mantido onde está, os grandes estúdios de Hollywood sinalizam que caso seus astros cometam agressão doméstica - a mera suspeita sobre as ações de Depp já poderia ser suficiente para tirá-lo dos holofotes, como foi feito com inúmeras outras figuras -, eles não serão punidos. Mas chega a ser ilógico que um indivíduo que fez alusões sem jamais concretizar suas piadas de mau gosto - até onde sabemos, é claro! - seja execrado, como Gunn vem sendo, e um que agrediu sua ex-mulher seja tratado com tanta pompa e circunstância. Pedofilia e estupro são crimes hediondos, mas a violência doméstica, por ser teoricamente menos grave que os outros delitos, parece ser "perdoável" - afinal de contas, de acordo com aquele infeliz ditado popular, "briga de marido e mulher, ninguém mete a colher".

    Para navegar as águas turvas do século XXI e chegar do outro lado com danos mínimos, indivíduos e empresas precisam de respostas incisivas e inequívocas: quem fica em cima do muro ou sinaliza incongruências é engolido. O mundo sempre será mais profundo do que supõem as vãs dicotomias, mas a narrativa atual nos obriga a funcionar em um regime dual, de esquerdas e direitas, apoiadores e detratores, protegidos e perseguidos. Na era do retorno ao “preto e branco”, a Disney habita um desagradável e confuso território cinzento quando se trata dos casos de Depp e Gunn. Ao menos por enquanto.

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