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    Akira: 30 anos depois, clássico que mudou o status da animação japonesa segue impactante

    Anime cyberpunk dirigido por Katsuhiro Ôtomo influenciou Matrix e Stranger Things.

    Akira se insere no cânone de filmes que mudaram tudo. Não é exagero dizer que o status da animação japonesa no mundo se divide entre antes e depois do filme que teve sua primeira exibição nos cinemas há 30 anos, no dia 16 de julho de 1988. O sucesso do ambicioso projeto e sua posterior posição como obra cult no ocidente pavimentaram o caminho para que febres culturais como Dragon Ball ZPokemón ganhassem escala global. A série Stranger Things, a trilogia Matrix, filmes como Poder Sem LimitesLooper - Assassinos do Futuro e até mesmo videoclipes de artistas como Kanye West e Michael Jackson receberam influência do clássico longa-metragem animado. Mesmo quem nunca assistiu ao filme provavelmente já teve contato com pôsteres e camisetas, referências de trechos em outros filmes (como Jogador Nº1) e homenagens em outras produções animadas (algumas delas reunidas no gif abaixo).

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    O trauma nuclear do Japão e o prospecto de uma nova destruição em grande escala é explorado pelo cinema nipônico desde Godzilla (1954), mas em Akira essa ansiedade é usada como subterfúgio para debater temas como angústia e alieanação juvenil em um contexto hipercapitalista e hipermoderno. Com influências cinematográficas que podem ser traçadas no tom rebelde do cinema da Nova Hollywood, especialmente de Bonnie e Clyde: Uma Rajada de Balas (1967), e pelo visual de obras como Blade Runner, o Caçador de Androides (1982) e 2001 - Uma Odisséia no Espaço (1968), Akira foi o primeiro longa-metragem da carreira de Katsuhiro Ôtomo, que empregou técnicas meticulosas e inovadoras para gerar o filme.

    A trama pós-apocalíptica usa o subgênero da ficção científica cyberpunk para lançar luz em vidas impactadas por um pessimismo existencial de um mundo onde a utopia tecnocrata só gerou frustração social e falta de perspectivas. Um ponto muito explorado no longa-metragem é a total desconfiança entre adolescentes e adultos, um comentário sobre o conflito de gerações no país que se viu dividido entre tradição e modernidade durante no contexto pós-Segunda Guerra Mundial — sem falar na crítica ao ambiente opressivo das escolas japonesas. As perturbadoras cenas de mutações corporais que deixariam David Cronenberg exultante e a violência que não pede licença para ganhar a tela também fizeram do filme um tratado sobre como animações podem se voltar para temas e propostas adultas, apesar do formato ser mais associado ao universo infantil.

    No enredo, Kaneda é o líder de uma violenta gangue de motociclistas que rivaliza com outras hordas nas ruas de Neo-Tokyo no ano de 2019. A cidade é um espaço tenso e decadente banhado em neon com o horizonte tomado por arranha-céus símbolos da opulência industrial. Nas perigosas ruas, protestos contra o governo dividem o espaço com a presença de seitas religiosas sob o olhar (e poderio bélico) de forças militares que controlam (ou ao menos tentam) a população. Um dia, Tetsuo, um irritadiço amigo de infância de Kaneda é sequestrado por autoridades depois de entrar em contato com uma criança que faz parte de um projeto secreto de desenvolvimento de armas humanas. Mentalmente instável, Tetsuo desenvolve poderes que não é capaz de controlar e ameaçam despertar a uma misteriosa força chamada Akira, que destruiu a cidade 30 anos antes. Destinado a impedir Tetsuo, Kaneda conta com a companhia da ativista política Kei e de três poderosas crianças, cobaias dos experimentos do governo, na tentativa de parar o ímpeto do amigo.

    Akira é baseado no mangá de mesmo nome escrito e desenhado pelo próprio Katsuhiro Ôtomo. A série completa, com mais de 2 mil páginas, foi publicada no Japão entre 1982 e 1990, e seu autor só aceitou que uma adaptação para os cinemas fosse produzida se ele tivesse completo controle criativo da obra. Para dar movimento para a aquela que viria a ser sua magnum opus, o diretor lançou mão dos recursos que tinha para conseguir fazer jus à sua visão. No total, o longa-metragem tem 2.212 tomadas e mais 160 mil quadros desenhados à mão, mais do que o dobro do que outros animes costumavam ter, o que garante uma fluidez de movimentos inédita até então. O filme também usa 327 cores diferentes, sendo que 50 delas foram criadas especificamente para esta produção. Todo esse esforço fez a produção ser orçada quase US$ 9 milhões, um recorde para um anime até então.

    Visualmente, chama a atenção a riqueza de detalhes como Neo-Tokyo é apresentada. Cada prédio, cada fachada, cada engrenagem, cada outdoor nas ruas parece único, um esforço que se nota em cada frame. Por si só, a riqueza visual do anime já teria garantido ao filme um lugar especial na história do cinema. Outro aspecto muito especial do filme é a maneira como Ôtomo usa a luz nesta rara animação tradicional majoritariamente noturna. Se Neo-Tokyo é uma cidade-personagem no longa-metragem, a forma como a luz é explorada em Akira é a alma do filme, em termos estéticos e também de conteúdo. Seja na luz fria do neon, na fluorescencia que emana das janelas dos prédios, no halo das lanternas da moto de Kaneda, na aura dos poderes de Tetsuo, nos holofotes usados pela políca como arma de controle, no feixe que emana de um satélite ou no pequeno ponto luminoso presente no poético desfecho do filme, a luz faz tanta parte do enredo quanto qualquer fala do roteiro.

    "Quando alguém desenha a luz 24 vezes a cada segundo em um filme de duas horas isso te dá uma nova forma de apreciar como a luz pode contar uma história por conta própria. Foi isso que Ôtomo e sua equipe dizeram em Akira. A luz é uma das camadas da história da mesma maneira como é uma das camadas da animação por células. Ela aponta para significados por trás do filme e iluminando os personagens e seus lugares no mundo por diferentes ângulos neste mundo de neon. Em outras palavras, Akira é um grande exemplo de como você dá vida à luz", analisou Evan Puschak, vídeo-ensaísta do canal The Nerdwriter no excelente vídeo "AKIRA: How To Animate Light".

    Cabe dizer que em uma revisão do filme, um aspecto de Akira que desponta como importante de se ressaltar é o fato de que o roteiro é avolumado demais. Há muitas tramas e subtramas, personagens que aparecem e depois somem, falta de contexto para algumas situações, sendo que não falta tempo, já que o longa-metragem tem duas horas de duração. Talvez seja o maximalismo visual do filme se fundindo com a narrativa. O fato é que é o paroxismo do filme, com a intensidade de suas cenas de ação e de informações, que pode ter sido um de seus maiores atrativos. Como nos filmes de super-heróis ou franquias como Star Wars ou séries como Game Of Thrones, os fãs gostam de se debruçar sobre minúcias, personagens secundários, detalhes do roteiro que possam servir como base para teorias. A questão do roteiro pode ser até relevada quando se pensa que o ritmo da animação e os estímulos temáticos e visuais que ela propõe geram uma experiência intensa em um bom sentido. O que não dá para relevar é a forma sexista como Ôtomo trata uma de suas personagens femininas, Kaori, agredida sexualmente e humilhada como um mero recurso de roteiro.

    Lançado em um ano importantíssimo para a animação japonesa — 1988 também contou com o lançamento dos clássicos absolutos Meu Amigo TotoroTúmulo dos Vagalumes —, Akira ainda impacta 30 anos depois por trazer as características de um grande filme de ficção científica: imagens inesquecíveis, vislumbres de um futuro que metaforiza os problemas do presente e ideias que ainda rendem debates. Hoje, como há três décadas, a tecnologia segue falhando em ser a panaceia prometida e os dados do mundo ainda são lançados em salas repletas de homens poderosos distantes dos problemas da população. Imagens como as das crianças imigrantes presas em centros de reclusão nos Estados Unidos são um dos múltiplos problemas que a juventude do mundo sofre nas mãos de poderosos e encontram eco na forma como Kaneda e Tetsuo foram tratados na infância desamparada.

    Há décadas Hollywood tenta realizar um remake com atores da obra máxima de Katsuhiro Ôtomo, mas o projeto encontra dificuldades para sair do papel. Neo-Tokyo agradece.

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