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    "Não poderia existir um diretor como Ingmar Bergman hoje", afirma Jane Magnusson, diretora de Bergman - 100 Anos (Exclusivo)

    Um retrato leve, humano, destacando os lados positivos e negativos do cineasta sueco.

    O ano de 2018 traz uma data importante ao cinema: o centenário de Ingmar Bergman, um dos diretores mais aclamados de todos os tempos por obras-primas como O Sétimo Selo, Morangos Silvestres, Cenas de um Casamento, A Fonte da Donzela, Persona, Gritos e SussurrosO Silêncio, Fanny e Alexander...

    Para compreender a pessoa por trás dos filmes, a diretora e crítica de cinema Jane Magnusson traz aos cinemas Bergman - 100 Anos, uma análise aprofundada do estilo, das preferências e das obsessões do cineasta sueco, conhecido pelas histórias intimistas nas telas, mas turbulentas nos bastidores.

    O projeto passa pela infância e a velhice, pelos prêmios e pelas acusações de se comportar de modo agressivo com as mulheres com quem trabalhou e se relacionou. Mas quem foi Bergman, afinal? Conversamos com quem entende bem do assunto: a própria diretora Jane Magnusson, cujo documentário constitui seu terceiro trabalho sobre o autor.

    Divulgação

    Este não é o seu primeiro filme sobre Ingmar Bergman. O que te interessa tanto na trajetória dele?

    Jane Magnusson: Bom, ele é um grande artista! O meu primeiro filme, Invadindo Bergman (2013), abordava a casa dele, e antes teve a série documental Bergmans Video. Quando Bergman morreu, todas as coisas dele foram empacotadas e enviadas para leilão em Estocolmo. Cada objeto, cada livro ou disco foi catalogado com riqueza de detalhes. Curiosamente, ninguém se importava com a sala onde ele guardava os vídeos, mas eu queria saber o que tinha naqueles 1700 vídeos guardados. Os vídeos foram negligenciados porque pertencem a uma cultura considerada menor, especialmente quando se trata de um dos diretores mais cultuados da Suécia. Por isso eu achei interessante explorar o conteúdo desses vídeos e o fato de ninguém se importar com eles. Então este foi o primeiro projeto.

    No fim dele, durante a montagem, eu percebi que Morangos SilvestresO Sétimo Selo tinham sido lançados no mesmo ano, e achei interessante. Como era possível que dois dos maiores filmes dele tivessem estreado quase ao mesmo tempo? Eu não tinha como explorar este fato, porque o filme já estava quase concluído. Mesmo assim, decidi me concentrar em 1957 e investigar a história por trás da produção de Bergman neste ano específico, porque certamente tinha algo único nesta fase do trabalho dele. Tive que convencer os meus produtores, na época. Então comecei a pesquisar, pensando que ele tinha apenas estes dois filmes. Para a minha surpresa, as coisas ficaram melhores: vi que ele também produziu duas imensas peças de teatro, algo incrível. Então vi que tinham mais duas peças de teatro além destas, e um telefilme, e quatro relacionamentos amorosos no mesmo ano. A vida amorosa dele era uma loucura, e a vida profissional, também.

    Durante o final da edição, eu descobri uma entrevista com Bibi Andersson em que ela diz “Naquele ano eu e Bergman começamos a trabalhar em No Limiar da Vida...”, e eu pensei: “Não é possível que ele tenha feito mais um filme!”.  Então voltamos a todas as pessoas que já tínhamos entrevistado, todos idosos, e elas confirmaram: “Sim, nós fizemos mais um filme naquele ano!”. Aquele ano acabou sendo muito mais interessante do que pensávamos a princípio, e foi um ótimo ponto de partida para este novo documentário.

    Você compara cada obra de Bergman com momentos da vida pessoal. Acredita que este conhecimento seja necessário para compreender realmente a obra dele?

    Jane Magnusson: Acho importante. Logicamente, eu não conhecia todos os detalhes quando comecei a fazer a pesquisa sobre ele e sobre a vida dele. Mas quando você descobre que o irmão mais velho de Bergman dava minhocas para ele comer, e existe uma cena no filme de Bergman em que um garotinho dá minhocas para o outro comer, é difícil não estabelecer uma conexão autobiográfica.

    Se alguém apenas aprecia os filmes pelo que eles são, isso é ótimo, não é indispensável saber que aquelas histórias refletem a vida pessoal do diretor. Mas eu considero interessante saber de onde vem a ideia para tantas cenas icônicas, se vieram da imaginação pura, ou se foram espelhadas em alguma experiência pessoal. Mesmo assim, entendo que este conhecimento não esteja ao alcance de todo mundo.

    Bergman - 100 Anos não apenas elogia o trabalho de um grande artista. Você também toca em temas polêmicos, como o apoio de Bergman a Hitler, as acusações de fraude financeira e o comportamento agressivo durante as filmagens.

    Jane Magnusson: Se ele mesmo não abordasse esses temas com tanta frequência, eu talvez nem julgasse importante mencioná-los. Mas Bergman falava sobre os defeitos dele o tempo todo. Ele falou muitas vezes sobre o apoio a Hitler durante a juventude, contou vários casos de ataques de raiva durante os filmes, falou das traições às suas esposas e namoradas, do fato de que sempre se enganava sobre a quantidade de filhos que tinha. Ele não escondia nada. No entanto, os filmes feitos sobre ele se recusavam, até agora, a revelar este lado. Eu acho uma pena, porque estes eram temas que o próprio Bergman estava disposto a discutir.

    Ao mesmo tempo, ele nunca se vangloria, nunca discutia seus talentos e qualidades. Ele achava Persona “interessante”, dizia que Gritos e Sussurros era “ok”, mas sempre considerava os seus outros filmes como lixo. Para mim, era importante tanto abordar as coisas pelo ponto de vista dele quanto homenageá-lo, porque os filmes são de fato incríveis. Mas não acho que precisamos de mais um documentário retratando como ele era genial, porque já fizeram muitos projetos do tipo, e tudo bem, é importante que existam, mas era hora de propor um ângulo diferente.

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    Uma questão importante no documentário é a licença que a sociedade costuma dar a artistas geniais para se comportarem de modo repreensível, porque as belas obras de certo modo compensariam os atos questionáveis. Como você enxerga a questão?

    Jane Magnusson: Eu acho possível detalhar o comportamento negativo de alguém e ainda achar a obra genial. Uma coisa não afeta a outra. O trabalho de Bergman permanece o mesmo, apesar do modo como se comportava com os atores e técnicos. Pablo Picasso, por exemplo, foi uma pessoa horrível. Eu não tenho dúvida disso, mas eu ainda aprecio muito a arte dele. O problema é quando deixamos de citar o aspecto negativo de alguém, com medo que isso arruíne o valor de sua arte. Mas as críticas não provocam este efeito, no meu ponto de vista.

    Mesmo assim, entendo que vivemos um momento diferente agora. Quando estávamos terminando de editar Bergman - 100 Anos, o movimento Me Too surgiu com força, e sabemos que se analisássemos a obra de Bergman pelo prisma desse movimento, o resultado seria problemático. Eu sempre gostei dos trabalhos do Woody Allen, e sei de muitas pessoas que também gostavam, mas agora questionam o valor das obras dele em função das acusações que sofre. Eu ainda adoro Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, adoro Manhattan, só achei Poderosa Afrodite horrível quando ele foi lançado, porque era basicamente a história de um homem idoso perseguindo uma jovem prostituta. O filme já era ruim na época, e não piorou com as acusações a Allen.

    Qual influência direta das obras de Bergman você percebe no cinema contemporâneo?

    Jane Magnusson: Em Invadindo Bergman, eu tive a oportunidade de conversar com alguns dos maiores diretores do mundo sobre Begman, e cada um me dizia ou as suas cenas preferidas, filmes preferidos, atores preferidos. Percebi então que ele teve um impacto imenso no cinema de hoje, mas cada um prefere um aspecto diferente da filmografia dele. Bergman foi um verdadeiro pioneiro no que diz respeito a construir papéis principais para mulheres. Basta ver Persona, O Silêncio, Sonata de Outono. Os personagens principais são quase frequentemente mulheres. Isso representa algo forte até hoje, quando se exige mais papéis femininos complexos, mas era uma atitude natural para Bergman.

    Neste aspecto, ele foi um exemplo, embora não tenha gerado uma influência tão grande, porque ainda é raríssimo ver diretores homens fazendo filmes com duas mulheres nos papéis centrais. Michael Haneke adora Cenas de um Casamento, e este mesmo filme inspirou os produtores da série Dallas, o que é um tanto inesperado. A ideia no início era só fazer uma refilmagem americana, mas depois o produtor decidiu colocar mais dinheiro no projeto e transformar os personagens em milionários, e assim começou a série. Acredito que Bergman tenha sim, um impacto enorme, mas é difícil apontar uma única coisa que tenha marcado a todos.

    Acredita que a nossa relação com autores e a autoria tenham mudado desde a época de Bergman?

    Jane Magnusson: Os meios de produção mudaram muito desde então. Não poderia existir um diretor como Bergman hoje em dia. Ele fez uma quantidade impressionante de filmes ao longo de mais de 30 anos, muitos deles de ótima qualidade. Ele obtém certo sucesso com Mônica e o Desejo, e depois com Sorriso de uma Noite de Amor, mas entre estes dois, ele fez uma série de fiascos financeiros, e mesmo assim teve a oportunidade de continuar fazendo muitos filmes, sem parar. Isso seria quase impossível hoje. Além disso, as produções eram significativamente mais baratas na época, e ele teve a oportunidade de ir à escola de cinema, estudar a história do cinema... Hoje, para você fazer sucesso, é quase indispensável que o filme de estreia já seja muito bem-sucedido.

    Diante de uma carreira tão extensa, você precisou efetuar um recorte entre quais filmes abordar e quais ignorar. Existiam filmes ou trechos específicos da trajetória de Bergman que você não quis mostrar?

    Jane Magnusson: Talvez não tenham existido restrições no sentido estrito do termo, mas eu fiz questão de conversar apenas com pessoas que trabalharam diretamente com Bergman e o conheciam muito bem. Não queria nenhum admirador, ou alguém que pudesse dar informações erradas ou distorcidas. Para evitar qualquer tipo de engano ou exagero, só conversei com quem o conhecia intimamente. Quando decidimos contar a história partindo de 1957, precisamos encontrar as pessoas que conviviam com ele na época.

    Tivemos sorte porque Gösta Ekman, o assistente de direção Bergman em 1957, ainda estava vivo na época – ele faleceu depois, infelizmente – e ele é uma figura importantíssima no cinema sueco. E o produtor dele também, e outros técnicos que participaram dos maiores filmes. Além disso, diversos atores suecos famosos queriam ser entrevistados, mas eles não conseguiam falar de nada além de si mesmos. Eu perguntava: “Como foi o seu trabalho com Bergman?”, e eles me diziam: “Bergman não fez nada, eu fiz tudo sozinho, fui eu que lhe mostrei como fazer...”. Eles falavam de si mesmos durante duas horas sem parar, era algo meio histérico. Estes trechos foram cortados do filme, é claro.

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    O documentário aborda uma quantidade impressionante de detalhes: os biscoitos preferidos, o iogurte de que mais gostava, a dificuldade de dirigir animais em set... Como chegou a todos estes elementos, e de que maneira integraram a edição final?

    Jane Magnusson: O fato de viver em Estocolmo, onde ele vivia, e onde todo o material sobre ele se encontra, certamente foi um privilégio. Antes de fazermos as entrevistas, pudemos assistir a muitas horas de material gravado dele, ou de pessoas falando sobre ele. Além disso, grande parte dos atores locais já trabalhou com ele em algum momento, porque ele viveu até os 89 anos de idade, e começou a filmar aos 27 anos.

    Além disso, Bergman era uma pessoa realmente engraçada e particular, então não foi difícil encontrar pessoas dispostas a contar essas histórias divertidas sobre ele. Ele era um tipo peculiar. Nós queríamos muito incluir esses episódios da vida dele e fazer um filme engraçado. Muitas pessoas adotam um tom bastante sério ao falar de Bergman, porque imaginam que precisam ser sérias e evocar apenas o que é mais importante. Mas eu queria fazer um retrato pessoal, humano, leve. Só não queria nenhuma história contada por terceiros, ou detalhes que não pudéssemos ter certeza se eram verdade ou não. Tudo no filme é comprovado pelos arquivos.

    Bergman está cercado de rumores, mitos, até por ter sido uma pessoa poderosa, e sabemos que muitas pessoas gostariam de se vingar de suas más experiências com ele através de depoimentos. Mas as rixas e intrigas não eram importantes para nós, então foram deixadas de lado.

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