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    A Vida Extra-ordinária de Tarso de Castro: Diretor Zeca Brito explica como criou esta "ode de amor ao jornalismo" (Exclusivo)

    Retrato de um herói marginal da imprensa independente.

    Estreou nos cinemas brasileiros esta semana a biografia A Vida Extra-ordinária de Tarso de Castro, que resgata esta figura essencial do jornalismo brasileiro. Tarso foi um dos criadores do Pasquim, Folhetim e outros veículos independentes durante a ditadura militar.

    O filme dos diretores Zeca BritoLeo Garcia narra a trajetória do personagem boêmio, apaixonado "por mulheres, bebida e jornalismo", como afirma um entrevistado. Com depoimentos de grandes escritores e músicos nacionais, defende a imprensa livre, sem medo de incomodar as esferas do poder.

    O AdoroCinema conversou com Zeca Brito sobre o projeto:

    O Pasquim costuma ser associado a Millôr, Ziraldo, Jaguar, mas não necessariamente ao Tarso. O filme corrigir esta imagem?

    Zeca Brito: Sem dúvida. Quando a gente percebeu que tinha um personagem tão interessante, tão controverso, a primeira dúvida foi porque alguém tão importante para o jornalismo brasileiro foi deixado de lado. Além do Pasquim, ele criou várias outras publicações, como o folhetim na Folha de São Paulo, o Segundo Caderno no Zero Hora. Por onde passou, o Tarso criou coisas, e todos esses meios de comunicação de alguma maneira deixaram ele de lado na história do jornalismo.

    O episódio do Pasquim é a grande injustiça histórica no percurso do Tarso, e sem dúvida uma das missões do nosso filme é dar luz a esse episódio e fazer uma espécie de revisionismo. Não digo apresentar como a versão absoluta, mas outra versão da história, que não foi muito contada nas biografias sobre o Pasquim. Os próprios fac-símiles do Pasquim reeditados nos últimos anos sistematicamente procuraram tirar o texto do Tarso das edições originais.

    Mas o Pasquim não existiria, da maneira como foi feito, sem o Tarso, com a linguagem que trouxe. O Pasquim vem do A Carapuça, que era do Stanislaw Ponte Preta. Com a morte Stanislaw Ponte Preta, os donos da publicação procuram o Tarso, que propõe dar continuidade a esse espaço de irreverência jornalística, de humor, com outras pessoas. Então ele compõe algo que só uma cabeça anárquica poderia compor, entre Paulo Francis, Jaguar, Millôr... Ele gostava de conviver e de lidar com essas personalidades extremas, brincando com o conflito, propondo um jogo ao entrevistado, criando problemas, saias justas, num jogo de ironia, mas ao mesmo tempo de muito afeto.

    Este jornalismo feito nos bares, irônico, sem meias palavras, é um modelo a seguir para você?

    Zeca Brito: Não necessariamente é só essa questão do bar, porque o Tarso vem do jornalismo tradicional. É importante lembrar que o pai dele tinha um jornal que permanece em atividade até hoje, o Jornal Nacional de Passo Fundo. Ele nasce naquelas engrenagens e passa por todas as fases do ofício, desde os doze anos de idade: começa como operador de máquinas, depois vai para a tipografia, para a edição de imagem. Então ele teve uma formação até chegar na crônica, e com quinze anos compra uma briga com o bispo da cidade, porque estava criticando uma missa natalina enquanto ignorava todos os mendigos, os desabrigados daquele inverno. Essa formação clássica é desconstruída ao longo da vida. Essa é a lição que a gente encontra no discurso dele. Onde nasce a notícia? Onde nasce a informação?

    Isso se torna muito importante no tempo atual, porque o grande paradigma contemporâneo é a questão relacional, de proporcionar os encontros sociais, os espaços de convivência, seja a esquina, seja um bar, seja a manifestação, a ocupação ou seja a bolsa de valores. É ali que surgem os assuntos, que surgem as narrativas. Independente do período histórico em que estava vivendo, o Tarso propunha ir atrás da vida real, ir atrás da notícia. Foi isso que a gente tentou trazer para o filme, tanto esse legado dele quanto a memória dele vivo como imagem, como manchete, além doss programas de televisão por onde ele passou e propôs essa anarquia toda. As lutas dele são muito atuais.

    Essa forma de jornalismo se perdeu na imprensa atual?

    Zeca Brito: A primeira coisa que tentamos fazer no filme é interferir o mínimo possível em termos de discurso nosso, dos diretores, eu e o Leo Garcia. Por isso, toda a proposta de linguagem é feita de encontros, com personagens conversando uns com os outros ao vivo ou por telefone, mas tudo tendo essa relação de diálogo. Esta visão sobre o jornalista brasileiro atual pertence a essa geração, não é a nossa visão. O filme faz um recorte geracional. Este ponto de vista compartilhado pelo Eric Nepomuceno, pelo Luiz Carlos Maciel e tantos outros pertence a uma época. Essa geração lutou por liberdade de expressão, por certo espaço de democracia, e também por uma sofisticação de linguagem, algo mais ligado à literatura. Eles criticam um certo engomamento, uma institucionalização excessiva dos manuais e releases.

    Esse pensamento ajudou a construir o que nós somos hoje como jornalismo e espaço de comunicação. Muito da imagem popular do Tarso passa pela figura anárquica, ou simplesmente do alcoólatra e mulherengo. Isso é uma coisa que eu não conhecia, porque não vivi essa geração, não fui um leitor contemporâneo do Pasquim ou do Nacional. Mas ao conviver com essa geração, durante as entrevistas, a gente descobriu a importância dele como jornalista, porque estabeleceu diálogos entre a cultura erudita e a popular, por exemplo, o jornalismo de humor, de charges paralelas a uma crítica de artes, de arte visual ou de música. Ele teve uma contribuição na ideia dos cadernos de cultura cheios de imagens, com grandes fotografias, explorando a imagem como algo narrativo.

    A propósito da estrutura o filme, é muito curiosa a ideia de colocar jornalistas para conversarem entre si, ou falarem ao celular sobre Tarso.

    Zeca Brito: Nosso ponto de partida era fazer entrevistas bem etílicas, digamos assim. Foi uma dica dos amigos para que voltassem ao tempo do Tarso. Mas essa geração que seguiu bebendo ou teve problemas de saúde ou parou de beber para continuar viva. Então o filme foi adaptado para chegar àquela essência do Tarso. Ele fazia as próprias entrevistas do Pasquim dessa maneira. O filme brinca com isso, tentando montar diálogos sem os diretores entrevistando os personagens. No fundo, é um filme sobre memória, sobre pessoas lembrando afetivamente de coisas, muitas vezes recriando histórias de que não se lembram direito. A gente tentou criar essa confusão, um filme em que uma entrevista leva à outra, como se fosse um grande diálogo sobre o Tarso.

    O projeto foi filmado com uma câmera só, então a gente teve que conceber bastante antes para chegar à conclusão de que a conversa por telefone resolveria a questão dos diálogos. Começamos a fazer as primeiras cenas em bar, com duplas, trios. Alguns personagens foram sobrando. Era um processo de listagem: Palmério Dória, Pereio e o Trajano no rodeio, no outro bar fizemos o Caruso, mas faltava o Caetano... Não era possível juntar todos. Então pensamos: “Vamos tentar fazer com que um personagem ligue para o outro. O que a gente não conseguiu criar como encontro vai se tornar diálogo nessas ligações”.

    Tem uma construção ficcional aí, pela decupagem. Esse tipo de entrevista só funcionou no nosso filme porque ficou dentro do contexto. Geralmente, a relação entre o entrevistado e o entrevistador é uma prisão para o entrevistado, porque fica olhando para o entrevistador, então se o entrevistador não ficar sorrindo, pode ser muito ruim nas imagens. Ao mesmo tempo, existe uma relação direta, porque são dois diretores ao telefone, e o entrevistado procura onde olhar, procura o Tarso, procura o vazio. Isso foi legal, serviu para esse filme. Era preciso correr riscos, não dá para fazer algo muito tradicional, nem renegar o clássico completamente, porque o Tarso navegava entre os dois.

    O filme se dedica bastante ao aspecto de sedução do Tarso, tanto com as mulheres quanto com os amigos e entrevistados.

    Zeca Brito: Isso revela a urgência do Tarso de viver, de estabelecer relações humanas, e se reflete no jornalismo dele. Essa conquista é uma maneira de se provar, de se colocar no mundo. Ao mesmo tempo, as diversas mulheres que ele amou têm muito carinho por ele. Por mais que o Tarso tenha sido um mulherengo, nenhuma tem rancor por isso. Era muito prazeroso estar com ele, ele tinha essa habilidade não só de seduzir mas de cultivar o prazer o afeto onde estivesse, e isso se refletia no que ele escrevia.

    Não digo que seja um modelo a seguir, mas é uma ideia de misturar um pouco as coisas. Hoje a gente separa tanto, mas tudo segue consumindo nosso corpo, nosso tempo. É isso que ele tem a dizer para a gente. Ao mesmo tempo, ele foi muito coerente. Apesar de ter sido uma coerência nociva civicamente, existe coerência na forma com que ele encarou a vida. Do início ao fim, ele se entregou à profissão. Apesar de tantas mulheres, se ele amou algo mesmo foi o jornalismo. Então o filme não é uma crítica ao jornalismo atual, é uma ode de amor ao jornalismo como um todo, independente de época. 

     

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