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    O choque como marca: o caso de Deadpool 2 e dos recentes filmes para maiores de 18 anos (Análise)

    Surpreender das formas mais bizarras possíveis tornou-se uma necessidade para Hollywood.

    É preciso ressaltar que esta não é uma análise puritana do humor de Deadpool 2. O humor negro e boca suja de Wade Wilson, que assusta 10 entre 10 senhorinhas até a alma com as suas piadas politicamente incorretas, são elementos obrigatórios quando o assunto é um longa do Mercenário Tagarela: "fugir deste conceito", como aponta nossa crítica, "seria trair a essência do personagem". Portanto, as transgressões de Deadpool 2 não são o problema - pelo menos, não para nós ou para os fãs -; de fato, a questão é como os roteiristas se propõem a surpreender o público e como o choque é utilizado como uma ferramenta vazia.

    Basta lançar um olhar à história da Arte para entender que - apesar do uso feito pelos corroteiristas do longa em questão -, o choque, quando empregado da maneira correta, pode ser um elemento narrativo ou estético perfeito. No entanto, por ser um ato tão complexo e cirurgicamente preciso, a tentativa de chocar com fundamentos produz uma linha muito tênue que separa a provocação intelectual e a desconstrução de estruturas - como o primeiro Deadpool hilariamente faz, em termos cinematográficos - da mera banalização total.

    Isso não quer dizer que não é possível apreciar o choque pelo choque - Festa da Salsicha, a despeito de protestos, foi aprovado pela crítica em geral e assim como seu sucessor, boa parte de Deadpool é baseada nesta premissa -; e também não quer dizer que as aventuras do Mercenário Tagarela tenham altíssimas aspirações artísticas, como as obras de provocadores natos como Lars von Trier e Gaspar Noé, os enfants terribles do cinema de arte; ou que ambos os filmes de Deadpool desejem escancarar paradigmas sociais e preconceitos, objetivo que o também chocante Corra!, vencedor do Oscar, brilhantemente concretiza.

    O imbróglio causado por Leitch e seus roteiristas se torna patente quando Deadpool 2 pesa a mão em seu humor para tentar completar uma missão verdadeiramente impossível: reproduzir o impacto do primeiro longa. É evidente que, enquanto sequência, a obra precisaria arcar, de uma forma ou de outra, com as consequências do sucesso do primeiro filme: mas como desconstruir a desconstrução? Para que Deadpool 2 realmente viesse a se equiparar a seu original e para manter a essência intacta, muitos riscos criativos precisariam ser corridos - assim, é óbvio que o caminho mais fácil foi escolhido.

    Quando não perde tempo repetindo as piadas feitas pelo primogênito da família, cobrindo-as com um problemático envoltório de referência auto-consciente, Deadpool 2 concentra-se em aperfeiçoar suas (paradoxalmente contidas) bizarrices. Não é de se admirar, portanto, que uma das cenas mais hilárias e geniais do filme surja durante os créditos finais - situação que, por sua vez, relembra a crítica do diretor de Logan, James Mangold, para este tipo de sequências - e que os roteiristas tenham preparado uma (felizmente removida) piada sobre o assassinato de um bebê identificado como A. Hitler.

    Nas situações descritas acima, o elemento que fez Deadpool ser tão único só aparece, com força, depois que o longa termina, enquanto o restante da projeção se concentra em tentar provar que a última bizarrice apresentada não será, nem de perto, tão chocante quanto a que está por vir - a cena que referencia a clássica trocada de pernas de Sharon Stone em Instinto Selvagem é exemplar deste ponto. O choque original é deslocado de seu foco no conteúdo - ou seja, da paródia que desconstrói e torna visível a máquina de produção hollywoodiana dos filmes de super-heróis - para as bizarrices e mau gostos sem fim.

    Então, quando o Fanático, também interpretado por Reynolds, é utilizado apenas como um fantoche para justificar uma piada analmente imbecil que poderia ter sido escrita pelos roteiristas de American Pie e quando a Fox faz com que os escritores de Deadpool 2 cortem uma piada envolvendo a (possível) venda de USS$ 66 bilhões do estúdio para a Disney, o Mercenário Tagarela é podado, tolhido e embalado em um exaustivo conformismo. Por mais que suas piadas pareçam transgredir dado seu conteúdo pesado, Deadpool 2 apenas reafirma tudo aquilo que o filme original lutou bravamente para não ser - especialmente quando se leva em consideração o tempo mal gasto com a X-Force devido à necessidade de expandir o "universo" e abrir espaço para sequências.

    No fundo, Deadpool 2 é exatamente como um bom, porém mediano longa do Universo Cinematográfico Marvel: uma obra repleta de sequências de ação relativamente inspiradas - aqui, David Leitch não atinge o brilho de De Volta ao Jogo ou de Atômica - que são, por sua vez, pontuadas por alívios cômicos simpáticos e apenas ocasionalmente hilários - aliás, qual é a função de T.J. Miller neste filme? Ser o alívio cômico do alívio cômico? No exato instante em que o Mercenário Tagarela atingiu o status de hit cinematográfico, sua posição como outsider - leia-se: seu maior trunfo - foi imediatamente desvirtuada.

    Em suma, o grande mérito de Deadpool não era seu caráter de “filme para maiores”, mas sim seu posicionamento como paradoxal crítico da Hollywood que ele mesmo ajuda a alimentar. Contudo, em Deadpool 2, as críticas mais interessantes do Mercenario Tagarela ao establishment da indústria cinematográfica deram lugar ao fan service, às piadas fáceis com o Universo Estendido da DC - bater em cachorro morto, especialmente se você replica o que inúmeros humoristas do Twitter já fizeram à exaustão, não vale de nada - e à escatologia pura: a transgressão cessa quando se torna robótica e lucrativa.

    A título de comparação, é interessante analisar o período de pré-produção de Deadpool e o de Deadpool 2. Antes de finalmente conseguir o aval da Fox para realizar seu projeto pessoal, Reynolds lutou durante anos para comprovar o potencial comercial do personagem após o fiasco de X-Men Origens: Wolverine - de fato, o estúdio só deu sinal verde para a produção depois que o aclamado vídeo-teste do astro como o Mercenário Tagarela conquistou os fãs ao ser vazado na internet. E em um claro indicativo da mudança de mentalidade de 2016 para cá citada anteriormente, a unanimidade do anti-herói falastrão é tamanha que até mesmo a própria Disney, sempre orientada ao entretenimento familiar e distante das produções para maiores desde o fracasso de O Quinto Poderjá considera dar continuidade à saga de Deadpool caso consiga concretizar a compra da Fox - leia- se: se a Comcast não estragar a festa de Mickey Mouse.

    Por causa de seu carnaval de piadas, de sua intensidade e de sua aparente selvageria, Deadpool 2 esconde o fato de que se limita a seguir a tendência que o original criou - por que não, por exemplo, desconstruir expectativas e entregar um drama mais sólido, aprofundando o lado trágico de Cable? Essa seria uma ousadia criativa digna do Mercenário Tagarela. Mas, no fim das contas, esta obra é só mais uma comédia para maiores onde o choque puro e banalizado é a verdadeira grife - hoje, os estúdios salivam pela oportunidade de incluir o selo Rated R nos materiais de divulgação de suas produções.

    Na indústria televisiva, há um termo criado após o icônico Fonzie (Henry Winkler) saltar por cima de um tubarão com o auxílio de esquis na popular série Happy Days: "jumping the shark" (ou "pulando o tubarão", em tradução livre). O conceito foi criado para denominar momentos e/ou acontecimentos de séries, filmes e outros produtos narrativos onde as obras em questão produzem um desenvolvimento inesperado e desconexo apenas para manter a atenção do público, diminuindo voluntariamente suas qualidades em favor da manutenção e/ou da ampliação da audiência cativa.

    Mas não foi só Fonzie que fez isso: em Deadpool 2, o Mercenário Tagarela também pula o tubarão.

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