Minha conta
    Conheça o filme brasileiro do Batman que é sensação nos festivais dos Estados Unidos (Entrevista Exclusiva)

    Conversamos com Elvis delBagno, o diretor do primeiro fan film do Homem-Morcego no mundo, Um Conto de Batman: Na Psicose do Ventríloquo.

    A podridão da sombria Gotham está impregnada no ar. Sem lei e sem proteção, as ruas e o submundo da cidade tornam-se uma perversa incubadora para todo tipo de criminosos, incluindo O Ventríloquo e seu boneco, o tenebroso Scarface. Operando como líder de uma linha de produção de drogas, o vilão deseja despejar suas substâncias tóxicas nas esquinas de Gotham - algo que o Batman, evidentemente, não vai permitir. Mas o que esta história do Homem-Morcego tem de peculiar é o fato de que o herói fala português.

    Realizado em 2014, premiado em diversos festivais ao redor do mundo e prestes a disputar o título de melhor filme do Gen Con Film Festival 2018 - divisão cinematográfica da Gen Con, maior evento de jogos de mesa e de tabuleiro do mundo -, nos Estados Unidos, Um Conto de Batman: Na Psicose do Ventríloquo é um projeto ímpar na cinematografia nacional. Para além de trazer um Bruce Wayne com pleno domínio da fina flor do Lácio, este longa, primeiro fan film do Homem-Morcego no mundo, foge completamente à atual tendência dos super-heróis com sua narrativa surreal, cartunesca, noir e psicologicamente dramática.

    Elvis delBagno

    Mas apesar do pioneirismo enquanto obra tupiniquim e adaptação independente das HQs do Cavaleiro das Trevas, o thriller é mais um exemplar de uma longa linhagem que encontra ecos nas mais diversificadas mídias narrativas: a fanfiction - ou ficção criada por fãs, em tradução direta, com base em seus personagens favoritos. Com a difusão das redes sociais e o estabelecimento do anonimato como figura-chave da internet, inúmeros espectadores e leitores se lançaram à tarefa de reinterpretar as tramas que formaram suas vidas ou de dar sequência às histórias que foram interrompidas cedo demais.

    Encaradas com certo desprezo elitista por alguns setores da crítica e do establishment literário - neste caso, são os fan films que sofrem com as opiniões hegemônicas do meio cinematográfico, onde são vistas como obras meramente amadoras -, as fanfictions encontraram um auge indiscutível quando Cinquenta Tons de Cinza, um derivado direto do fenômeno Crepúsculo, mas sem vampiros e acontecimentos sobrenaturais, tornou-se um dos maiores hits literários de todos os tempos. O sucesso estrondoso legitimou a produção e a propagação das fanfictions, que vêm desbravando um terreno cada vez mais fértil nos últimos tempos, um contexto que nos traz diretamente a Elvis delBagno e ao seu singular projeto:

    "Eu sempre fui fã do Batman [...] Depois de terminar a faculdade, estava buscando um projeto; bancar um filme mesmo, fazer um projeto que chamasse um pouco mais de atenção. Na época, estava começando essa onda de heróis e aí tive a ideia do Batman [...] Aí, falei: 'vou tentar fazer [um filme do Homem-Morcego] porque o Batman é um personagem que eu conheço, um personagem voltado ao cinema noir, um cinema escuro, fechado. Era a minha área e eu poderia aproveitar os meus limites, não colocar tantos efeitos especiais", contou delBagno, em entrevista exclusiva ao AdoroCinema.

    Elvis delBagno

    Os fan films podem soar como um fenômeno recente, mas a verdade é que esta vertente do cinema existe desde os idos de 1926, quando o primeiro experimento do tipo foi produzido: Anderson's Our Gang, livremente inspirado na popular série de curtas Our Gang (ou Little Rascals), que narrou as cômicas desventuras de um grupo de crianças pobres de 1922 a 1944 e deu origem ao recente clássico da Sessão da Tarde, Os Batutinhas. Essa carga histórica está presente, de certa forma, em Um Conto de Batman, obra que nasceu e se superou a partir das limitações provocadas por questões logísticas e por intermédio das referências fílmicas que delBagno carrega em sua bagagem cinéfila:

    “O Scarface foi uma das coisas mais difíceis de fazer, e o boneco me deixou muito orgulhoso porque é um dos pontos altos do filme. Foi uma escolha. Eu sempre gostei do Alfred Hitchcock, sempre gostei do cinema de suspense e o meu filme preferido é Psicose; essa questão da dupla personalidade sempre foi chamativa para mim. [...] Resolvi apostar no Scarface porque era um personagem que ninguém tinha explorado e que me dava muito espaço para “brincar”. Como o filme é um pouco surrealista, daria para colocar o Batman nesse submundo junto com ele”, ressalta o diretor, revelando que chegou a considerar o Coringa como antagonista; o Palhaço do Crime, no entanto, seria um personagem muito custoso e, por isso, foi descartado dos planos do diretor brasileiro.

    Elvis delBagno

    A opção por atuar em uma zona de maior conforto também demonstra como a fanfiction é uma peculiar mescla entre a sensibilidade do fã que a produz e as características icônicas do material base. Enquanto Um Conto de Batman é inequivocamente um longa do Homem-Morcego - como as referências visuais e tonais das HQs do Cavaleiro das Trevas que estão presentes no filme bem demonstram -, a obra se derrama e se expande igualmente sobre outros territórios. Neste caldeirão de citações que é Na Psicose do Ventríloquo, sequências marcadamente noir ou surreais - as cenas de delírio e paranoias são os destaques deste suspense - ganham novos contornos por causa da presença massiva da cultura pop - um dos bandidos é fã de James CameronWoody Allen - e das escolhas da roqueira trilha sonora:

    “Durante o processo de fazer um filme, busco o que quero debater. Muitas pessoas acham que vou fazer um filme com o Batman para contar uma história e pronto. Não, sempre coloco os assuntos que quero debater, tento me apropriar do personagem [...] Eu tinha essa cultura pop na mão, só que sou muito mais do cinema clássico americano, cresci assistindo a esse tipo de filme [...] Por isso acabei jogando dos dois lados: não conseguiria narrar um filme tão popular, teria que ser um pouco mais centrado, mais lento. O Stanley Kubrick falava que quando você vai contar algum filme, conte sobre o que você sabe. Então não poderia apostar em uma coisa que não sabia, um cinema cheio de explosões”, disse o realizador.

    No entanto, como já exposto anteriormente, dificuldades narrativas não são as únicas que foram encontradas pelo cineasta. O desafio de realizar um fan film do Batman no Brasil põe, imediatamente, duas problemáticas de ordem logística: a questão do financiamento em território tupiniquim e a dos direitos autorais. Por causa da estrutura cinematográfica em nosso país, produzir um longa-metragem sem o apoio de emissoras de televisão estabelecidas ou sem o aporte de recursos fornecidos por editais diversos pode ser uma verdadeira provação bíblica. Por outro lado, a escassez de verba e a restrição orçamentária não prescrevem o futuro de um projeto - a história dos blockbusters que o diga.

    Internacionalmente, produções como Primer (US$ 7 mil de orçamento) o clássico cult de Shane Carruth, e o terror Atividade Paranormal (US$ 15mil gastos vs US$ 193 milhões arrecadados, um lucro de mais de 1000%) são exemplos perfeitos de filmes que dispunham de recursos parcos e, ainda assim, conquistaram o público e a crítica. Nestes casos, é mais do que comum que o financiamento venha das reservas dos próprios realizadores e de seus contatos mais próximos, como familiares e amigos - e foi exatamente isso que ocorreu com Um Conto de Batman: delBagno reuniu os R$ 80 mil (aproximadamente US$ 22 mil) necessários para a confecção do longa tirando dinheiro de seu próprio bolso e arrecadando auxílios financeiros de sua família. De acordo com o diretor, a verba foi obtida durante todo o processo de produção e foi utilizada paulatinamente para pagar seus colaboradores e para promover a obra no exterior.

    DelBagno superou o obstáculo que tange os direitos autorais através do investimento de uma partição do orçamento em aconselhamento jurídico para se assegurar de que não infringiria a propriedade intelectual de nenhuma companhia. Por mais que existam desde os anos 1920 e que tenham se popularizado com a ascensão das convenções voltadas para fãs de quadrinhos e de outras mídias nerds, nos anos 1970, os fan films - assim como as outras modalidades de fanfiction - seguem estigmatizados como obras de baixa qualidade e marginalizados pelos estúdios e/ou companhias. Por outro lado, também não é raro que um ou outro fan film consiga romper a barreira: o melhor exemplo de sucesso recente é Voldemort: Origins of The Heir, média-metragem que narra a história pregressa do antagonista-mor da saga Harry Potter e que foi aprovado oficialmente pela Warner, detentora dos direitos da franquia cinematográfica do bruxinho.

    Extremamente popular e com 13 milhões de visualizações no Youtube, Origins of The Heir foi avaliado pela companhia como uma forma de promoção gratuita de sua IP (intelectual property) e abriu um precedente para outros fan films, incluindo Um Conto de Batman, que também lida com uma propriedade intelectual da Warner - a major de Hollywood é dona da DC e de seus personagens. Atuando na zona cinzenta entre as obras renegadas pelo mercado e aquelas que conseguem assegurar uma distribuição cinematográfica tradicional, os fan films são permitidos por empresas que acreditam que a ficção realizada pelos fãs expandem o conhecimento de suas marcas e porque os diretores destas produções amadoras comprometem a não buscar fins lucrativos com as obras em questão.

    Relevante exercício narrativo e corajosa produção, Um Conto de Batman: Na Psicose do Ventríloquo está muito longe da perfeição - a falta de continuidade da iluminação, certos desencontros de roteiro entre o real e o surreal e o ritmo pesado da segunda metade da projeção são os principais deslizes -, mas é uma reafirmação da importância dos fãs na manutenção da vivacidade da própria ficção em si, uma vez que o público pode operar nos dois pólos da equação: consumo e produção. Sem a fabulação dos espectadores, frequentemente barradas por estúdios e editoras, são as próprias mídias narrativas que sofrem. Afinal de contas, o ato de contar histórias - algo que fazemos desde a mais tenra infância quando criamos narrativas para nossos brinquedos, como ressalta a jornalista Stephanie Burt em seu preciso artigo sobre o tema para a revista The New Yorker - é tão importante e natural quanto o ato de ouvi-las.

    Confira Um Conto de Batman: Na Psicose do Ventríloquo abaixo:

    facebook Tweet
    Comentários
    Back to Top