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    Opinião: É justo fazer um filme sobre Marielle Franco agora?

    Algumas considerações sobre um projeto controverso, antes mesmo de começar.

    Passaram-se mais de duas semanas desde que a vereadora Marielle Franco, do PSOL, foi executada no Rio de Janeiro ao fim de um dia de trabalho. Criada na favela da Maré, ela entrou na política e militou pelos direitos humanos, exigindo tratamento justo tanto para civis quanto para policiais, vítimas frequentes da violência.

    Desde então, a comoção pública tem sido intensa, dentro e fora do país. Personalidades como Viola Davis e o Papa se pronunciaram em pedido de justiça. A direita acusou a esquerda de aproveitar o caso para levantar bandeiras progressistas, enquanto a esquerda criticou a direita por utilizar o caso para levantar bandeiras conservadoras, como a intervenção militar.

    Parentes, amigos, colegas de partido, eleitores e a viúva de Marielle choram a perda de uma figura exemplar em sua luta e representativa de um segmento social particularmente discriminado, por ser mulher, negra, bissexual e cria da favela. O caso está longe de ser resolvido, apesar da pressão popular. Enquanto os debates se acirram, a produtora Paula Barreto (de Lula, o Filho do Brasil e João, o Maestro) anunciou que está preparando um longa-metragem baseado na vida da ativista.

    É hora de fazer um filme sobre Marielle?

    A notícia do projeto foi recebida com espanto. Gritos de oportunismo ecoaram no mar espinhoso das redes sociais. Mas quando seria a época correta de fazer um filme sobre Marielle? Quanto tempo é necessário esperar para que o retrato seja considerado uma homenagem, ao invés da exploração econômica de uma tragédia?

    Não existem respostas fáceis para a questão, é claro. O anúncio do projeto, em si, tem o mérito de prolongar a discussão sobre um tema que muitos setores da sociedade preferem abafar - figuras políticas importantes sequer se pronunciaram sobre o caso. Longas-metragens demoram para ser feitos e chegar o cinema, de modo que a execução política de Marielle ecoaria para além de 2018.

    Além disso, o filme anunciado não teria como foco a morte da ex-vereadora, e sim sua vida - a infância, o crescimento na Maré, os ideais políticos. Os fundos seriam revertidos inteiramente para os moradores locais, o que causa a incômoda equivalência de arte como projeto social, ou seja, uma arte utilitarista, ao invés de reflexiva.

    O maior perigo, no caso, é a hagiografia, o retrato puramente elogioso e sem nuances da biografada. Apesar das campanhas difamatórias, espalhando notícias falsas sobre Marielle (de que teria ligações com o Comando Vermelho, de que teria engravidado de um bandido aos 16 anos etc.), é importante dizer a verdade sobre a sua vida. Mas nenhum retrato é apenas uma ascensão pródiga rumo à tragédia: o filme perderia sua relevância social se representasse apenas a trajetória de um mártir.

    O mais importante seria inserir Marielle em um contexto mais amplo: a desigualdade social, o preconceito contra mulheres - especialmente negras - a luta para fazer política partindo de um meio desfavorecido, o fato de se impor politicamente a ponto de incomodar altas esferas do poder. Seria importante buscar causas, retratar a complexidade da situação presente e estabelecer consequências, de modo dialético. Nenhuma história é apenas a sucessão dos fatos. Marielle precisa ser o ponto de partida, e não de chegada nesta discussão.

    Acima de tudo, o projeto precisaria ser condizente com a figura da própria Marielle. Neste sentido, ele começa com problemas sérios no que diz respeito à representatividade.

    A voz da mulher negra

    No primeiro mês de 2018, a ANCINE divulgou um estudo sobre gênero e raça dos profissionais do audiovisual brasileiro. Considerando os 142 longas-metragens lançados comercialmente nas salas do país em 2016, nenhum foi dirigido por uma mulher negra, nenhum foi roteirizado por uma mulher negra e nenhum teve produção executiva de uma mulher negra.

    Não foi um "apagão" isolado. Voltando aos anos anteriores, a situação é a mesma: nota-se uma participação maior das mulheres no mercado outrora quase completamente dominado por homens, mas apenas as brancas. Não é por falta de profissionais negras competentes e interessadas. Elas estão com seus filmes nos festivais, cada vez mais. No entanto, na história do cinema brasileiro apenas dois longas dirigidos exclusivamente por mulheres negras estrearam comercialmente: Amor Maldito, de Adélia Sampaio, e O Caso do Homem Errado, de Camila de Moraes. O que acontece?

    Os problemas estão em todas as etapas do processo, do financiamento à distribuição, e o controverso projeto recém-anunciado sobre Marielle Franco é só o último exemplo do que o público do cinema nacional desde sempre está habituado a ver: histórias negras contadas por brancos. Compor elenco e equipe com moradores do Complexo da Maré e reverter para lá a renda não deve ser uma contrapartida aceitável em pleno 2018. Aos negros suas narrativas. À mulher negra o direito de se colocar na tela.

    Segundo o supracitado estudo da ANCINE, um diretor negro aumenta consideravelmente a chance de o roteirista ser negro e ambos ampliam a participação negra no elenco. A chave de ouro da genuína representatividade está na criação e é limitando o acesso a tais espaços que se preservam os estereótipos, o controle e ultimamente a imagem de "bom branco amigo" da diversidade. Muito comentado é hoje o conceito de "lugar de fala" (para saber mais, leia Djamila Ribeiro), que no cinema caberia justamente às posições de direção, produção e/ou roteirização, onde, não por acaso, o acesso é tão restrito.

    Forjada precocemente ainda no luto e distante da luta que a vereadora assassinada empenhava pela voz da mulher negra, uma cinebiografia de Marielle Franco com assinatura branca tem espectadores bem definidos e certamente não são os moradores da Maré que com ela conviveram ou periféricos em geral que nela poderiam se inspirar.

    Seguindo um tempo que não é o do oportunismo, aqueles realmente capazes de eternizar com propriedade no cinema a trajetória de Marielle querendo um dia o farão à sua maneira. O sabor do futuro é Café com Canela, dos promissores Ary Rosa e Glenda Nicácio, filme de gente preta pensado por gente preta. Mesmo com todo burburinho causado e sessões esgotadas em diversos festivais, o drama permanece inédito em circuito comercial. Não é difícil entender o por quê. Mas até quando?

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