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    Deserto: Jonás Cuarón conta como utilizou o suspense para criticar a xenofobia e o racismo (Entrevista exclusiva)

    Coestrelado por Gael García Bernal e Jeffrey Dean Morgan, segundo longa do filho de Alfonso Cuarón está em cartaz.

    Juan Naharro Gimenez

    Debaixo do escaldante sol mexicano, um caminhão avança a duras penas. Chacoalhando sobre o irregular terreno e apinhado de pessoas que buscam uma vida melhor do outro lado da fronteira, o veículo para de funcionar e condena seus passageiros a caminharem até os Estados Unidos. Entretanto, o que este grupo não sabe é que o pesadelo, na forma de um atirador psicótico e xenófobo, os espera logo à beira do sonho.

    Repleto de tensão do início ao fim e apoiado sobre uma crítica ao racismo e ao discurso de ódio contra os imigrantes mexicanos, Deserto é um thriller de perseguição que analisa um tema crucial para o mundo nos dias de hoje sem perder o pique do espetáculo. Em entrevista exclusiva ao AdoroCinema, o diretor Jonás Cuarón, filho do consagrado Alfonso Cuarón (Gravidade), explicou o feliz casamento entre a forma e o conteúdo do longa, mostrou que não tem medo de filmar em condições adversas - e/ou com animais - e reforçou a importância de se trabalhar com estrelas como Gael García Bernal e Jeffrey Dean Morgan:

    SUSPENSE E CRÍTICA

    Assim como Corra!, um dos maiores sucessos de 2017, a obra de Cuarón também utiliza o entretenimento como uma plataforma para alçar voos mais ousados. Mais especificamente, Deserto copia uma estratégia narrativa do cinema norte-americano para criticar, justamente, a mentalidade conservadora dos EUA:

    "Durante muitos anos, quis fazer um filme sobre a imigração e queria fazer de forma a atingir o grande público. Foi aí que lembrei que o cinema estadunidense dos anos 70 e 80 disfarçou muitas questões políticas por trás de gêneros como o terror ou a ação".

    DONALD TRUMP E A XENOFOBIA

    Prestes a completar um ano no cargo mais poderoso dos Estados Unidos e do Ocidente, Donald Trump continua tentando impor seus ideais e medidas xenófobos. E neste contexto, onde inúmeros movimentos fascistas ressurgiram nos EUA motivados pela administração do ex-apresentador de TV, Deserto tornou-se mais relevante do que nunca - algo que, na visão de Cuarón, é uma "conquista" negativa:

    "Quando comecei a trabalhar neste filme, há 10 anos, já havia uma grande retórica de ódio em relação aos imigrantes nos Estados Unidos e ao redor do mundo. Quando o filme foi lançado, Trump tinha acabado de anunciar sua candidatura à presidência e ele fez isso através de um discurso muito racista [presente no teaser de Deserto]. Isso mostra que, com o tempo, o filme se tornou mais relevante - e isso é uma coisa ruim, ao meu ver. Isso significa que esse discurso de ódio está se tornando mais popular, mais mainstream".

    O VILÃO

    Negan, o psicótico antagonista da série The Walking Dead, é um dos personagens mais interessantes e complexos da atualidade - e o responsável por criar todo este magnetismo ao redor do vilão mais odiado da televisão é Jeffrey Dean Morgan. Mas apesar de ser conhecido por suas performances intensas no cinema e nas telinhas, o ator foi a primeira escolha de Cuarón para o papel do caubói - que corporifica o brutal desprezo estadunidense aos mexicanos em toda sua violência - justamente por causa de sua sensibilidade:

    "Jeffrey sempre teve uma grande habilidade em criar personagens aterrorizantes e humanos. Não queria um monstro do Halloween, queria um monstro humano e real. Foi por isso que escolhi Jeffrey. Ele é grande e assustador, mas quando você o conhece, ele é um cara muito sensível. Sabia que essa capacidade de criar uma jornada emocional ajudaria a construir um personagem humano. E outra ferramenta que utilizei para humanizar o personagem de Jeffrey foi seu cachorro. Sam é um solitário durante todo filme e o cachorro é a sua única companhia. Além do fato de ser um cão realmente assustador, era importante, para mim, tê-lo no filme porque sabia que seria a única forma de mostrar a humanidade de Sam".

    FILMAR NO DESERTO - E COM CÃES

    Aliás, falando em cães, todo cineasta sabe que não se deve filmar com animais e crianças por causa da imprevisibilidade destes pequenos seres. Aconselhado tanto por seu pai, quanto por seu tio, o também diretor e roteirista Carlos Cuarón, e seus amigos na indústria a esquecer o ensandecido cachorro, Jonás, no entanto, bateu o pé e manteve o inimigo canino. Assim, não por acaso, a maior dificuldade encontrada em Deserto foi... filmar no deserto:

    "Mostrei este roteiro para os meus colegas, para o meu pai e para o meu tio e todos me disseram para não trabalhar com um cachorro. Foi difícil trabalhar com um animal, mas, no fim das contas, as cenas mais assustadoras são protagonizadas pelo cachorro porque ele é uma criatura muito agressiva [...] Para ser honesto, a maior dificuldade não foi o cachorro; foi encontrar a locação. Quando escrevi o roteiro, não pensei muito na logística, então me concentrei apenas em encontrar os desertos dos quais gostava. Só depois percebi que seria um pesadelo filmar neles porque eles ficam no meio do nada".

    PRODUÇÃO EM FAMÍLIA

    Quando se fala na prole de artistas consagrados, a existência de uma pressão para que os filhos superem os pais geralmente é logo pressuposta. Este, entretanto, não parece ser o caso na família Cuarón. Colaborador frequente de seu pai, com quem coescreveu o aclamado Gravidade, Jonás também falou um pouco sobre a (curiosa) dinâmica familiar no set de filmagens:

    "Meu pai só esteve no set durante um dia. Tenho sorte de tanto meu pai quanto meu tio odiarem ficar no sol, eles ficam com queimaduras muito facilmente. Então, eles só estiveram presentes em um dia e como o calor era muito grande, eles foram embora. Mas meu pai e meu tio são grandes produtores porque ambos também são diretores; então, eles sabem que o filme pertence ao cineasta. Eles sempre me disseram o que pensavam, mas nunca impuseram nada sobre o projeto".

    A HUMANIDADE EM MARCHA

    Outro grande trunfo de Deserto é a pluralidade do grupo de imigrantes "liderado" por Moisés, o personagem de Gael García Bernal. De fato, a bagagem cultural e política da estrela do filme foi instrumental na construção do roteiro e para retratar os indivíduos que formam o fluxo migratório da fronteira EUA-México:

    "Gael é um especialista nesse assunto. Ele já produziu, atuou e dirigiu em documentários sobre a migração. Então, obviamente, através de Gael, eu pude incrementar a pesquisa que fiz anteriormente. Para mim, era importante adicionar um pouco de tudo que descobri sobre os migrantes que cruzam a fronteira com os Estados Unidos. Mas como quase não usamos diálogos, tivemos que ser muito sutis na forma como representamos esses aspectos. Há um personagem para o qual só escalamos um ator da América Central porque queríamos representar a América Central. Os maiores grupos que estão tentando atravessar a fronteira atualmente vêm de lá. Então, também colocamos a garota, através da qual tentamos relatar os casos de assédio sexual que ocorrem durante a travessia. Tentei construir cada personagem para representar um pedaço do espectro da imigração sem poder discursar muito sobre isso".

    O RETORNO DO ÓDIO

    Não existiriam civilizações se não fosse pela migração. No entanto, com a crise dos refugiados, impulsionada pelos conflitos bélicos que eclodiram ao redor do mundo, principalmente no Oriente Médio, a chegada de novos rostos em sociedades estabelecidas é algo cada vez mais rechaçado pelos núcleos conservadores. Para Cuarón, só é possível escapar do discurso de ódio e do contexto xenófobo e racista no qual nos encontramos presos através da humanização do Outro e do exercício da empatia:

    "O grande problema que vejo nessa retórica de ódio é que ela cria a imagem do imigrante como um monstro sem rosto, um monstro que vive do outro lado do muro. E é por isso que é importante dar um rosto a eles, para mostrar o lado humano da situação. Além disso, foi muito importante escalar Gael no papel principal porque eu o admiro muito, é um ator fantástico e é uma estrela. Então, eu sabia que o público criaria uma empatia com ele imediatamente. O problema para mim é esse: o discurso de ódio cria personagens sem face, tornando difícil com que nós nos identifiquemos com as histórias humanas que estão por trás dessas imagens".

    Descrito como um "macabro pique-e-esconde com disparos e mordidas" que prende a atenção do espectador pela crítica do AdoroCinema, Deserto está em cartaz nos cinemas brasileiros.

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