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    Michael Dudok comenta a 'incrível' experiência de trabalhar com o Estúdio Ghibli na animação A Tartaruga Vermelha (Entrevista exclusiva)

    "Histórias são muito mais poderosas que a realidade", diz o cineasta, que cita Kurbick e Allen ao comentar seu cinema autoral e disseca a construção de um longa-metragem tão sensível apesar de sem falas.

    Michael Dudok alcançou um feito para poucos: trabalhar com os seus ídolos. E, em se tratando de seu trabalho específico como cineasta, isso se trata de uma verdadeira façanha. O animador vencedor do Oscar 2001 com o curta Pai e Filha dirigiu o primeiro filme não japonês do lendário Estúdio Ghibli, comandado pelos gênios Hayao Miyazaki (A Viagem de Chihiro), Toshio Suzuki (As Memórias de Marnie) e Isao Takahata (O Túmulo dos Vagalumes). E foi extremamente bem-sucedido no que também foi seu longa de estreia, intitulado A Tartaruga Vermelha.

    O resultado é um filme ambicioso e tocante. A Tartaruga Vermelha alcança profunda expressividade em 80 minutos quase que destituído de falas, conferindo ludismo a uma temática universal e ostentando soberba técnica e visual num trabalho tradicional. Não à toa, foi premiado em festivais pelo mundo, inclusive no Anima Mundi — onde Michael Dudok ganhou um trófeu, foi ovacionado pela plateia do Cine Odeon, no Rio de Janeiro, e pôde bater um papo exclusivo com o AdoroCinema.

    O cineasta holandês falou de tudo um pouco: desde a dificuldade de realizar animações independentemente à parceria com um dos estúdios mais prestigiados e provocantes do planeta. Sobre seu cinema autoral, fez associações grandiosas a Stanley Kubrick e Woody Allen, sempre mantendo a seriedade e garantindo seu compromisso com um trabalho artístico genuíno; mesmo que isso custe mais um longo hiato até o seu próximo filme. Confira a entrevista, na íntegra:

    AdoroCinema: Você realizou apenas quatro curtas-metragens em 14 anos, depois levou mais uma década até lançar o seu primeiro longa-metragem. Diz que a gente não vai precisar esperar tanto tempo pelo seu próximo filme.

    Michael Dudok: Ah, eu vou demorar mais tempo [risos]. Não, na verdade eu não sei... Há algumas razões pra isso. Curtas levam muito tempo pra ser feitos, porque não dão lucro. Conseguir dinheiro pra fazer um curta-metragem é muito difícil, demora muito tempo. E eu não sou alguém que faz cinema o tempo todo. Eu preciso de um tempo para conceber meus filmes e, no resto do tempo, eu trabalho em comerciais, livros, dando aula, em outros projetos, com outras pessoas, pra ganhar a vida. É difícil viver de curtas. É como um trabalho de caridade. Fazer o longa-metragem demorou mais porque toma mais tempo mesmo pra fazer mesmo. Eu comecei esse projeto em 2007 e o finalizei em 2016. Então, eu levei 9 anos pra fazer.

    Você se mantém fiel à animação tradicional. Por quê?

    Eu sigo fazendo animação tradicional porque é a minha técnica, é o que eu faço. Muitos colegas mudaram para a animação digital, alguns dele incrivelmente bem, mas eu realmente gosto de animação à mão. Eu também acredito profundamente que isso não pode desaparecer, de forma alguma. E eu vejo que existe um revival porque as pessoas estão percebendo as limitações da animação em computação gráfica. Animação à mão é mais humana, tem mais emoção, mais calor, porque não é perfeita, não é limpa.

    E por que o Estúdio Ghibli?

    Porque eles entraram em contato comigo [risos].

    Mas como isso aconteceu? Eles nunca tinham trabalhado com um diretor estrangeiro antes...

    Foi uma aventura para eles. E eles deixaram isso claro pra mim no início: "É algo novo pra gente trabalhar com um diretor não japonês, é arriscado. É novo pra você, pois é o seu primeiro longa-metragem. E nós não entendemos por que mais longas não entram em colapso, porque muitas coisas podem dar errado, muitas." Mesmo assim, eles disseram: "Vamos tentar? Pode não dar certo, mas queremos saber se é possível." E eu aceitei totalmente. Algumas pessoas teriam tido um colapso nervoso na hora (me pergunto como seria se isso tivesse acontecido). Mas, enfim, eles disseram pra gente seguir passo a passo. Primeiro apresentei a história em forma escrita. E a cada passo completado, eu avançava até o próximo passo.

    Como foi ser desejado por um gênio como Hayao Miyazaki?

    Hayao Miyazaki comentou com algumas pessoas que gostaria muito de trabalhar comigo, mas não nos falamos diretamente. Eu tratei com o produtor Toshio Suzuki e o diretor Isao Takahata, que também é muito famoso. Eu levei meses até me recompor. Adoro o trabalho deles. Eles são gigantes! Vi muito os seus filmes desde o início dos anos 90. Então, foi impactante receber um convite tão direto, que foi apenas uma mensagem: "Vamos trabalhar juntos?" Foi incrível!

    E o seu trabalho se assemelha ao realizado pelo Estúdio Ghibli em tratar de causas ambientais, discursar sobre a preservação do planeta...

    Podemos dizer que ambos somos sensíveis à natureza. Eles chegam a agir pessoalmente em prol de causas ecológicas. Hayao Miyazaki já investiu muito dinheiro na proteção da natureza. E seus filmes falam sobre esse respeito — não sobre respeitar coelhinhos e pássaros amáveis, mas toda a natureza, até mesmo as forças sombrias da natureza. Muitos de nós do ocidente também temos essa preocupação, só que de um modo diferente, secundário. Os japoneses têm uma cultura mais profunda e veem a natureza de modo mais vívido que nós. E eu nem gostaria de idealizá-los a respeito: apesar de muito sensíveis à beleza e à poesia da natureza, eles também são muito concretos, possuem cidades enormes, repletas de edifícios altos. De todo modo, sim, nós temos isso em comum.

    E conflitos de ideias? Em algum momento houve diferenças criativas entre vocês?

    Nenhuma grande. Só pequenas discussões. Porque, assim: eles são diretores, eles fazem filmes autorais. Na Califórnia, é comum os produtores tomarem as decisões finais sobre um filme, e se o diretor não se encaixar, eles trocam, simples assim. Cineastas como [o saudoso Stanley] Kubrick, Woody Allen e tantos outros desenvolvem os seus projetos pessoais. Seus filmes são como seus filhos. Eles escrevem as histórias, e, mesmo que não, são muito participativos desde a concepção dos projetos. Eu sou assim, os diretores do Estúdio Ghibli também. Assim, eles respeitam a responsabilidade artística do diretor. Respeitam muito! E acho que esse tipo de parceria funciona bem pra mim.

    Mas foi engraçado no início, pois eles ficaram surpresos quando eu perguntava o que eles achavam disso ou daquilo. Eles diziam: "Espera, você quer a nossa opinião?". E eu realmente queria, pois tinha muito a aprender com eles. Fazer um longa-metragem é muito trabalhoso, são muitas direções... E eu já gostava da cultura japonesa, tinha visitado o país várias vezes como turista, aí eu tinha muita curiosidade por entender melhor a sensiblidade japonesa. Principalmente Takahata, que é muito culto, mas também Suzuki, que é mais intuitivo. Então, eles sempre deram a sua opinião, mas deixando claro que eu era o diretor e eu decidiria. Algumas dessas opiniões eram culturais, o que é importante no Japão e menos importante no Ocidente. E como minhas opiniões são muito ocidentais, eles me ajudaram mais nesse aspecto.

    É interessante você dizer isso, pois, em seu primeiro longa-metragem, você demonstra bastante maturidade, tratando de diversos temas com complexidade e fluidez. Como foi encontrar esse equilíbrio?

    Muito obrigado. A fluidez era mesmo muito importante, porque o filme tem muitos tempos, nós precisávamos de muitos tempos. A palavra é "colaboração". Eu trabalhei bem próximo da montadora [Céline Kélépikis], que foi muito responsável por essa fluidez, e com uma corroteirista [Pascale Ferron], por uns quatro meses, que tem mais ou menos a minha idade, muita experiência em filmes em live-action e entende bem a linguagem cinematográfica. Então, não foi escrever uma história e fazer um filme. Nós mudamos a história várias vezes, tornando-a melhor, mais suave... Nós tomamos o tempo necessário para aperfeiçoá-la. Porque não é um filme de ação, não tem muito humor, não é repleto de diálogos; pra manter a atenção do público, é preciso guiá-lo muito conscientemente. Era preciso entregar algo que realmente conduzisse o espectador.

    Fale um pouco mais sobre a realização de um filme tão expressivo com tão poucos diálogos — o que já é a sua marca registrada.

    Eu não diria que é uma marca registrada, porque esse recurso é comum em curtas-metragens. Em longas-metragens, até acontece; existem muitos filmes, de muitos países, mas é verdade: é bem raro. Em parte porque exigir que a plateia permaneça atenta por mais de uma hora, sem diálogos, é um desafio. Não é impossível, mas é complicado.

    No início, eu escrevi alguns diálogos, mas convenhamos: a história é sobre uma pessoa sozinha numa ilha (risos), haverá muitos momentos de silêncio. Então, é uma escolha natural para essa história, que não funcionaria necessariamente se a história fosse ambientada numa cidade. E tem outra coisa: um filme tem muitas linguagens. A atuação fala por si só. E os poucos diálogos que havia soavam artificiais, não soavam reais. Funcionavam intelectualmente, mas a sensação não era boa. Aí decidimos tirar tudo, e eu fiquei muito animado, pois senti que seria interessante. Só teríamos que nos assegurar que as pessoas não sentissem muito a falta de diálogos e fossem guiadas apenas pelo que vissem.

    E tem uma coisa que eu gostaria de contar: os personagens do filme fazem ruídos humanos. Elas riem, tossem, respiram. Nós gravamos atores fazendo esses sons. Já no fim do processo de desenho de som, pedimos que eles respirassem forte em todos os momentos do filme. Achei essa ideia ótima porque, de uma maneira muito sutil, isso contribui para a nossa empatia pelos personagens. Nos sentimos próximos. Quando uma pessoa respira, você se sente próximo dela. É muito simples.

    Que bonito! O filme também usa dessa sensibilidade ao retratar o ciclo da vida, ao tratar sobre destino de maneira sutil, poética... Onde você se inspirou? A parceria ajudou nesse processo?

    Não literalmente, creio que por osmose. Porque o filme trata frequentemente de coisas maiores que a vida. E eu amo isso. Esse é, provavelmente, um dos principais motivos por eu estar nessa profissão. Eu adoro entretenimento, mas ele não é suficiente. Eu quero, de alguma forma, fazer as pessoas sentirem algo maior. E o ciclo da vida realmente mexe comigo. Toda pessoa nasce, cresce, fica muito bonita, sensual, entra na meia-idade, morre, e então vem uma outra geração, e mais outra... Isso é muito comovente.

    Respondendo à sua outra pergunta, minha maior inspiração foram a mitologia e os contos de fadas. Em muitas culturas existem histórias de animais se metamorfoseando em humanos ou vice-versa. A mitologia grega principalmente, cujas lendas eu aprendi na escola. Essas coisas me fascinam, e às vezes a gente esquece delas. Eu busquei essas influências japonesas e gregas, que realmente me emocionam, e as reuni de alguma forma nesse filme.

    Como é trabalhar com fantasia hoje em dia? O cinema investe cada vez mais em realismo. Você vê as pessoas cada vez menos crédulas?

    Eu não acho que as pessoas gostem menos de fantasia... Os videogames tomaram conta e trazem as pessoas para dentro do mundo da fantasia. Enfim, essa é um outro assunto. No filme, realidade e fantasia são coisas separadas, claramente. Mas, paradoxalmente, eu não as vejo em separado. Acho que a nossa imaginação e nosso senso de realidade estão sempre se confundindo. Pra você, caminhar por aquela praia é uma experiência completamente diferente da minha. É a mesma praia, mas não é a minha realidade, é a sua realidade. E eu também vejo a vida que vivemos como um sonho incrível. Sonhamos à noite e acordados, e nenhum deles é absoluto, ambos são relativos. Todos são influenciados por emoções, pensamentos, crenças etc. Assim, se o filme fale sobre imaginação ou realidade, pra mim essas duas noções estão muito ligadas, sua separação é invisível. Histórias são muito mais poderosas que a realidade. Pois elas atingem a essência, as emoções mais profundas do inconsciente e do coletivo.

    Você venceu o Oscar com o curta Pai e Filha e acaba de ser indicado novamente em, seu primeiro longa-metragem, A Tartaruga Vermelha. Você tem recebido muitos convites para trabalhar em Hollywood, inclusive em filmes em live-action?

    Em live-action, não. Tive alguns convites para trabalhar em animações, livros... Um convite específico para animar uma biografia sobre um cantor francês famoso [que, pela reação, certamente não irá aceitar]. Mas não muitos. E não tem nada em mente. Acredite ou não, desde que terminei esse filme, há um ano, eu venho trabalhando sete dias por semana em sua divulgação. Em entrevistas, pôsteres, no desenvolvimento do DVD, muitas coisas. Eu gosto disso, principalmente de ser convidado para visitar o Brasil [risos]. Mas gosto mesmo de responder perguntas em debates após as exibições do filme. E, como cada país tem uma época diferente de lançamento, estou nessa turnê mundial. Acabei de participar de sua divulgação no Reino Unido, onde moro, na Inglaterra. Quando voltar, eu só vou tirar um tempo para dormir. Só então eu vou poder pensar numa próxima história.

     

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