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    CineOP 2017: Documentário sobre Luiz Rosemberg Filho celebra inquietações do inventivo cineasta

    Noite de sábado (24) também foi marcada pela sessão de curtas pioneiros dirigidos por mulheres e filmes realizados por povos indígenas.

    No último sábado (24), a Mostra de Cinema de Ouro Preto, chegou ao terceiro dia de sua edição em 2017 com um resgate da obra de cineastas mulheres pioneiras, sessões de curtas produzidos por indígenas e, na mostra contemporânea, um documentário dedicado a um diretor radical e sem par no cânone do cinema nacional.

    "Carta de amor ao outro"

    Na tela, a emblemática cena que abre a magnum opus de Orson Welles, Cidadão Kane. Após o magnata moribundo pronunciar sua palavra final, o globo de neve em sua mão encontra o chão. Entretanto, não é "Rosebud" que diz um idoso Charles Foster Kane em seu leito de morte, mas sim Rosemberg. É com subversões como esta que o documentário Rosemberg – Cinema, Colagem e Afetos une retalhos para celebrar o contestador e vanguardista Luiz Rosemberg Filho, um dos principais expoentes brasileiros de um cinema radicalmente anti-comercial, autoral, inventivo e rigorosamente fiel aos seus valores.

    Com algumas alusões a outros filmes, incluindo cenas de obras como 2001 - Uma Odisséia no Espaço e Cantando na Chuva, o filme de Cavi Borges e Christian Caselli estabelece um paralelo com um mural de colagens desenvolvido por décadas por Rosemberg em sua casa, que inclui imagens de parceiros nos cinemas que foram seus amigos pessoais, como Andrea Tonacci e Glauber Rocha, e referências na arte, como Jean-Luc Godard e José Celso Martinez.

    A voz do diretor, sempre em off, comenta cronologicamente seus feitos cinematográficos, por vezes marginalizados na historiografia da produção audiovisual nacional por conta da censura que sofreu na ditadura civil-militar e na "nova censura", descrita por ele, representada pela burocracia das políticas públicas de incentivo ao cinema e pela ideologia mercadológica de distribuição. De momentos assim, surgem comentários valiosos como quando o diretor explica as alegorias de obras herméticas como O Jardim das Espumas (1971).

    Rosemberg não esconde frustrações e não poupa críticas nem a filmes populares entre crítica e público, como Cidade de Deus e Tropa de Elite, que para ele representam um cinema prostituído "sem nenhum mérito" — entre fragmentos e contradições, o diretor assume um fascínio inexplicável pelos grandes musicais hollywoodianos, já que "ninguém é perfeito". Há ainda espaço para falas irascíveis com críticas contra a TV ("a imagem da deformação"), a guerra dos drones ("o mundo virou uma ficção científica"), a religião e a instituição do casamento.

    Mesmo conhecido por ser um diretor que não faz concessões estéticas, narrativas e de discurso, Rosemberg afirma que seu cinema é movido pela missão de criar "cartas de amor ao público". Rosemberg – Cinema, Colagem e Afetos está longe de ser um filme tão radical como a obra do homenageado, mas serve como ato singelo de admiração que pode apresentar a trajetória de um diretor "maldito" para toda uma nova geração.

    Female gaze

    Neste ano, a CineOP articulou sua curadoria para que a programação lance luz sobre a realizações que foram marcos na produção audiovisual brasileira e que tem como agentes principais grupos que ainda são minoria no fazer cinematográfico do país, como mulheres, negros e indígenas. 

    "Fiz uma pesquisa com os filmes realizados por mulheres no cinema brasileiro para fazer a mostra e muitos dos filmes das primeiras cineastas mulheres desapareceram. Por exemplo, O Mistério do Dominó Preto, da Cleo de Verberena não existe mais", comentou o curador Francis Vogner dos Reis antes das sessões dos curtas A Entrevista (1966), de Helena SolbergRosae Rosa (1968), de Rosa Maria Antuña, e Mulheres da Boca (1982), de Inês Castilho e Cida Aidar, obras pioneiras feitas por mulheres no Brasil.

    O mais deteriorado entre os três, com imagens tornadas quase fantasmáticas pela ação do tempo, Rosae Rosa é também o mais ingênuo dos curtas apresentados neste segmento. Ao trazer uma história muda com fundo de comentário social entre um mendigo e uma jovem entretida com as flores de seu jardim, o filme tem uma narrativa simplória para os padrões de hoje, mas é um caro documento de qualquer forma, e pode ter sido o primeiro filme feito por uma mulher em Minas Gerais.

    Mulheres da Boca traz um olhar feminino para as prostitutas que trabalhavam na região da Boca do Lixo, na cidade de São Paulo, retratando particularidades da condição daquelas mulheres. "Queria aqui fazer uma homenagem póstuma ao Chico Botelho, fotógrafo [do curta], cujo olhar muito carinhoso, muito amoroso, para as prostitutas da Boca do Lixo é o que eu mais gosto no filme", disse Inês Castilho ao apresentar o curta na CineOP. 

    Apresentado pelo curador como "um dos grandes documentários brasileiros dos anos 60", A Entrevista marcou a estreia na direção Helena Solberg, única mulher entre os principais realizadores associados ao Cinema Novo. "Minha geração foi uma geração dez anos antes da geração de Leila Diniz. Nós fomos uma geração antes da pílula anticoncepcional. A psicanálise era uma coisa muito sofisticada que poucas pessoas faziam", comentou a diretora ao explicar o contexto da obra que é composta pela justaposição de depoimentos em áudio de mulheres com suas visões sobre casamento, virgindade, sexo e papéis de gênero e imagens encenadas que estudam e colocam em xeque a noção de feminilidade. O projeto traz Rogério Sganzerla como montador.

    O olhar de dentro

    No sábado (24), a mostra histórica trouxe um conjunto de sessões de curtas que complementam um debate sobre legitimidade, angulação de discurso e controle sobre narrativas fílmicas sobre grupos oprimidos iniciada no dia anterior. Se antes foram exibidos filmes sobre povos indígenas produzidos por homens brancos, a CineOP apresentou ainda quatro curtas realizados por cineastas indígenas que capturam os ritos, as lutas e os valores de suas comunidades em imagens em movimento.

    Os destaques foram o contundente Já Me Transformei em Imagem (2008), de Zezinho Yube, que narra a história do povo Huni kui com uma montagem ágil, depoimentos emocionantes e bom uso de imagens de arquivo, e o documentário Mbya Mirim, de Ariel Duarte Ortega e Patricia Ferreira (Keretxu), que acompanha as peripécias de Palermo e Neneco, dois meninos Mbya Guarani, num sensível e divertido retrato contemporâneo sobre a vida de crianças indígenas.

    *O AdoroCinema viajou para Ouro Preto a convite da CineOP

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