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    Olhar de Cinema 2017: "A Família busca a poesia na adversidade", afirma o diretor Gustavo Rondón Córdova

    Conversamos com o cineasta venezuelano sobre o filme de abertura do festival.

    O diretor venezuelano Gustavo Rondón Córdova está presente no Brasil para apresentar o seu primeiro longa-metragem, A Família, selecionado na Semana da Crítica em Cannes e escolhido para abrir o 6º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba. A história gira em torno de um pai e seu filho morando num bairro pobre de Caracas, até um acidente grave forçar ambos a fugirem de casa.

    Este belo e duro retrato da sociedade local foi bastante aplaudido pelo público e elogiado pelos críticos - leia a nossa resenha. O AdoroCinema aproveitou para conversar com o cineasta sobre o projeto:

    Você disse que o filme é muito particular da Venezuela, e de Caracas. Quais aspectos do projeto são universais?

    Gustavo Rondón Córdova: Quando desenvolvi a ideia do filme há alguns anos, eu sabia que o drama da delinquência juvenil dizia muito sobre a América Latina. Sentia que o tema dos meninos merecia a nossa atenção, inclusive no caso brasileiro, onde temos cidades que vivenciam isto. Mas havia elementos da textura do conflito que soavam específicos ao público local, como a escassez e o valor que o dinheiro adquire entre as pessoas.

    No entanto, o mais emocionante da história para mim são as atitudes do pai com seu filho. É algo universal. Depois existe o fato de não haver uma mãe – e a América Latina é uma sociedade matriarcal. Este pai e este filho são muito órfãos de amor. Eu queria que isto estivesse marcado, e que se tornasse externo quando o personagem está tentando se conectar. Acredito que o filme é muito latino-americano, muito característico do que somos, do nosso comportamento e dos nossos contrastes.

    Os personagens tomam atitudes repreensíveis, mas você nunca faz julgamentos morais.

    Gustavo Rondón Córdova: Sempre criei personagens que sobrevivem, impulsionados pelo contexto a reagir como reagem e a fazer o que fazem. Neste sentido, todos participam da dinâmica entre o “permitido” e o “não permitido”, pois o limite entre “legal” e “ilegal” é completamente elástico. Partindo desta ideia de que todos somos responsáveis, você não pode julgar o personagem. Estamos todos participando disto e talvez no momento em que nos expomos, percebemos que somos pessoas solitárias e precisamos de alguém. O filme retrata um pouco isto: um pai e um filho que acabam se reconhecendo como seres humanos.

    Qual é o espaço para poesia numa história tão bruta?

    Gustavo Rondón Córdova: Busquei respeitar o valor cinematográfico do filme. Eu queria que fosse muito realista, mas que não se tornasse um documentário. De alguma maneira a proposta formal sempre buscou a poesia na maneira de tratar espaços através do silêncio. São os momentos de quietude que permitem ao espectador entrar em um estado distinto, em sintonia com o personagem e o seu cotidiano. Tentamos fazer com que o público se sintonize com o ser humano.

    Sobretudo, junto ao fotógrafo e ao diretor de arte, Alexandre Simon, tentamos encontrar a beleza inclusive na adversidade. Queríamos que a beleza surgisse do realismo. Eu criei esta história que transita entre mundos distintos porque conheço muito bem os dois e participo de ambos. Então me interessava encontrar a beleza nos elementos mais crus, mais brutos. Acredito no cinema também como meio de revelar beleza no que existe de mais árido.

    O ator mirim Reggie Reyes é excepcional. Como encontrou o garoto e o preparou para o papel?

    Gustavo Rondón Córdova: Quando planejei o filme, tinha certeza de que o pai seria um ator e o filho seria um não-ator. Então procuramos durante quatro meses em colégios, bairros, clubes esportivos, centros de skate. Encontramos Reggie em um campo de futebol do seu bairro, um bairro operário. A primeira coisa que eu procurava era uma imagem forte. Como seria um filme silencioso, era necessário ter uma imagem forte, um corpo que falasse, um corpo passando da criança ao adolescente.

    Fizemos muitos testes. Reunimos cerca de 500 garotos entre 15 e 18 anos. Os pais os levavam com prazer porque isto mantinha seus filhos ocupados durante as férias por cinco ou seis semanas, de graça, e ainda com a possibilidade de participar de um filme. Eu não dizia que era diretor, e sim o assistente do diretor, para ficar próximo deles e realizar os testes. Um dia, liguei a câmera durante vários minutos e aconteceu uma mágica, tive certeza de que este menino aguentaria uma câmera apontada para ele durante todo o filme. Além disso, eu tinha a ideia de que a espontaneidade do filho e a técnica do pai resultariam num mecanismo eficaz. 

    Os atores só recebiam o roteiro no dia de filmar, e depois aprendiam o diálogo e trabalhavam as encenações. Filmamos quase cronologicamente. Os atores também se conheceram ao longo do filme, como na história. O ator e o garoto não se tinham se encontrado antes – eu os separei antes da filmagem para a descoberta acontecer diante das câmeras – e fui muito protetor com eles. Isto era o mais importante para mim.

    Qual é a importância de lançar A Família na atual situação política da Venezuela?

    Gustavo Rondón Córdova: Quando comecei a escrever o filme, queria falar de certos aspectos do país que atravessa uma crise complexa há muitos anos. Queria fazer um filme sobre a política, sem falar dela diretamente. A sociedade está muito politizada: tudo ao redor reflete esta política, mesmo sem ser explícito.

    Agora o filme foi lançado num momento muito mais crítico, então o que o filme diz se transforma numa declaração. Torço para que o filme seja visto, e tenha muita atenção. O mais importante é gerar notícias positivas para o país porque estamos num momento complexo, negativo. Estamos felizes que o filme, de alguma maneira, estabeleça uma comunicação e faça as pessoas prestarem atenção no que está acontecendo.

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