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    Festival do Rio 2016: Nelson Xavier e Erico Rassi falam sobre o "western" do centro-oeste Comeback

    Filme aborda a rotina solitária de um pistoleiro idoso e saudosista que deseja voltar a matar.

    Em determinada cena de Comeback, filme que integra a principal mostra competitiva do Festival do Rio 2016, o protagonista Amaro diz algo que, em apenas uma linha, sintetiza a força motriz da trama do filme goiano: "Eu tô vivo ainda".

    O longa-metragem de estreia de Erico Rassi, que também assina o roteiro, foi exibido na tarde desta segunda-feira (10) no Cine Odeon, no centro do Rio de Janeiro. A sessão especial contou com a presença da equipe responsável pela produção do filme e dos atores Nelson Xavier e Marcos de Andrade.

    Com mais de 50 anos de carreira e presença em obras fundamentais na sétima arte brasileira como Dona Flor e Seus Dois MaridosVai Trabalhar, Vagabundo e A Queda, Nelson Xavier interpreta Amaro, um ex-pistoleiro idoso que vive sozinho numa cidade do interior de Goiás lembrando de seus dias de glória como matador de aluguel. Saudoso dos dias em que Anápolis era "Terra de Marlboro", Amador trabalha numa função que considera inglória demais: Ir de bar em bar recolhendo o dinheiro que lhe é devido nas máquinas de caça-níquel. Ao menos ele segue às margens da lei.

    Em um álbum de fotografias, o personagem não guarda retratos de seus familiares, mas sim recortes de jornais que destacam os crimes que já cometeu no passado, incluindo uma infame chacina num restaurante da região. Há ainda em sua coleção pessoal o registro em VHS de uma reportagem televisiva sobre uma matança que cometeu. Sem remorsos e sem arrependimentos, Amador tem seu próprio código de valores e busca "fazer um comeback" à vida de mercenário, apesar da visão já fraquejar e da última pistola de seu arsenal estar defeituosa.

    "O que me encantou nesse roteiro foi exatamente esse toque único, que representa o Brasil. Nós somos uma coisa periférica no sistema capitalista. Nós somos uma sociedade periférica, de massa, de consumo dirigido. Nós somos essa coisa perdida no arrabalde do sistema. Esse personagem simboliza isso querendo ser maior [do que é]. Querendo uma glória que ele não tem mais", avaliou Nelson Xavier em conversa com o público após a sessão de Comeback no Odeon. "Esse personagem usa elementos, usa valores como se fossem legítimos sendo que ele está lidando com a morte das pessoas. Essa contradição, esse paradoxo, para mim, é extraordinário. 'Ah, mato ou não mato?' Pra ele é uma coisa banal. A vida humana é banal, como é no Brasil, como é a ética brasileira", completou o astro do filme, que apesar de tratar de questões tão intrínsecas ao país tem um títiulo em inglês, em entrevista posterior ao AdoroCinema.

    A trama do longa-metragem, que também pode ser encarada como um tratado sobre a solidão e a nostalgia na terceira idade, partiu de duas ideias distintas do diretor. Enquanto produzia um roteiro para um drama sobre um pistoleiro, Rassi filmava um documentário sobre Walfrido Rodrigues dos Santos, o Carne Frita, tido como o maior jogador de sinuca do Brasil em todos os tempos. Assim como Amador, o jogador que foi invencível por mais de 20 anos se sentiu relegado ao ostracismo na velhice. "O roteiro é baseado num personagem que exemplifica outros personagens: O Carne Frita, que é um ex-jogador de sinuca que foi conhecido, mas conhecido apenas no meio dele, e por isso ele se sente injustiçado", contou o cineasta.

    Após a primeira sessão do filme na Première Brasil, no domingo (09), já houve na imprensa especializada quem comparasse o longa aos faroestes americanos e o personagem Amador aos personagens encarnados por Clint Eastwood. Durante o debate no Odeon, mediado pelo crítico Mário Abbade, a comparação foi retomada. Apesar de esclarecer que os westerns de Eastwood não serviram como influência decisiva na criação do roteiro, Rassi afirmou que o filme dialóga com a temática de Gran Torino, mas isso é algo mais indireto.

    "As pessoas querem criar os arquétipos, querem associar com o Clint Eastwood", disse o diretor. "Mas quando eu escrevi o filme eu não pensei no Gran Torino e em Os Imperdoáveis. Eu pensei no Carne Frita. Se acham que [o personagem Amador] é parecido com o William Munny, de Os Imperdoáveis, óitimo. O filme é impecável! Se as pessoas estão fazendo esse paralelo, acho ótimo. Não foi o que eu pensei quando eu escrevi, mas..."

    A fotografia traz ecos da estética dos westerns e do cinema noir, acentuando a noção de precariedade nos locais que serviram de locação para as filmagens. Assim o filme representa uma periferia de uma pequena cidade reforçando a ideia de decadência sobre a qual se depara, em sua própria vida, o personagem principal. 

    As periferias de Rio de Janeiro e São Paulo têm ganhado espaço nos cinemas nas últimas décadas, mas qual seria a singularidade da periferia de Anápolis, cidade onde o filme foi rodado, e o que ela representa no longa-metragem? "A particularidade principal eu acho que é a coisa da contravenção, do jogo ilegal. Essa coisa das maquininhas de caça-níquel quase sai de Anápolis e se torna um produto dali, da região. Tem uma pessoa famosa que já foi presa algumas vezes, que eu não vou falar o nome... Então, é de lá. Tem essa ambientação muito forte. Esse desmando institucional ali parece ser mais presente e espalhado", comenta o diretor.

    Comeback é um drama que flerta com o cinema de gênero e traz momentos cômicos e outros que beiram o thriller. Com um enredo que constantemente descontrói expectativas, boa parte dos momentos de humor se constroem em ironias.

    As canções românticas que integram a trilha-sonora poderiam ser encaradas como parte dessa ironia, mas o diretor esclarece que não se trata disso. "As vezes a gente vê usarem a trilha com essa função de ironia e acaba ficando uma coisa caricata. Eu queria usar uma coisa que fosse em princípio saudosita e bonita. Foi por isso que eu escolhi Altemar Dutra, Chavela Vargas... São coisas que eu gostava de ouvir. Quando eu era pequeno tinha um tio meu que fazia uma coleção de boleros. Então, para mim, tem uma coisa saudosista sim."

     

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