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    Cine Ceará 2016: Clarisse e o horror do patriarcado brasileiro

    Noite dedicada ao terror explora o gênero, em outros três filmes, como metáfora à ditadura e à miséria.

    O quinto e penúltimo dia de competição do Cine Ceará 2016 foi de horror. Não, Shosanna não invadiu o Cine Teatro São Luiz. O clima na cidade segue ótimo e o atraso foi menor que em noites anteriores. Mas, na telona, o gênero unificou temática e contundentemente os quatro filmes exibidos na noite, como metáfora à ditadura, à miséria ou ao patriarcado.

    Petrus Cariry traz ao 26º Cine Ceará seu terceiro longa e sexto curta-metragem — e as pessoas insistem em tratá-lo como uma revelação do cinema nacional. Esse status está com os dias contados, dado o nível de maturidade de sua arte no difícil, porém excepcional Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois.

    Último filme da Trilogia da Morte, completada por O Grão e Mãe e Filha, Clarisse retrata a personagem-título (Sabrina Greve) como uma mulher em estado de catatonia. Vítima de traumas irreversiveis decorrentes da morte da mãe, da participação direta no homicídio do irmão e da culpa que atribui ao pai, ela se tornou incapaz de sentir emoção, até mesmo prazer no sexo. E se rebela. Seu drama psicológico precisa ter fim, e ela irá para a casa isolada de Samuel (Everaldo Pontes), seu pai doente, para resolver essa agoniante celeuma familiar.

    Desse modo, o longa-metragem se revela uma jornada de libertação plena. De Clarisse, é claro, mas principalmente de Petrus. Como o estouro da abertura do filme (numa pedreira em tons vermelho e azul que reflete a dualidade que permeia todo o filme, até o título), seu cinema explode. No entorpecimento da personagem, ele justifica a realização de uma narrativa fragmentada, arrojada, para abusar de inventividade estética e praticar uma incursão incomum na cinematografia brasileira e, principalmente, nordestina.

    Também diretor da maravilhosa fotografia de Clarisse, Petrus transforma uma residência enorme numa típica cabana de filme de horror, permeada por tons escuros, bichos mortos, uma atmosfera mórbida. Parte da ação, a câmera vasculha os cômodos e gera muita tensão. A referência ao terror psicológico do Iluminado de Stanley Kubrick se concretiza na música "Midnight, The Stars and You", enquanto o desenho de som evoca o metafísico (uma cena em especial remete diretamente a Tio Boonmee) e a permanência lúgubre tanto do espaço onde vive Samuel, como do estado em que vive Clarisse.

    Meio abandonada, a casa reflete o próprio Samuel. Mas sua debilidade ilustra mais que a iminência da morte. Responsável pelo abandono de Clarisse, a lidar com seus demônios sozinha, ele é um homem que se dedicou ao trabalho e cujo papel como pai se resumiu a casar a filha com o homem de negócios que toca sua empresa. Ele é, portanto, uma representação decrépita do patriarcado, resultando num olhar otimista sobre a ascensão de movimentos feministas e sociais como um todo frente a essa elite machista, centralizadora, trágica do país.

    A erupção de Clarisse (sempre vestida em tons laranjas, como um vulcão) rumo a um desfecho libertador vai ao encontro desse discurso. O modo como o empoderamento final da personagem é filmado representa a ambição e o sucesso do novo filme de Petrus Cariry. Longe de uma pretensão exacerbada, o cineasta articula referências artísticas variadas numa narrativa sofisticada, plena de simbolismos fantásticos e compreensível. De modo que tudo se explica e resulta em alguma coisa muito boa sobre o artista e sua ideia: uma grande obra de arte.

    O horror da miséria

    Casa Blanca tem um título curioso, haja vista as paredes encardidas que compõem a humilde residência de Nelsa e Vladimir. Aqui, a melhor tradução possível é "desbotada", já que ausência define o estado de profunda miséria em que vivem os personagens. Nelsa é uma mulher em idade muito avançada, com dificuldades até de se locomover. Vladimir é portador de Síndrome de Down. Um necessita do outro. Portanto, vivem abandonados.

    Vladimir vagueia de maneira irresponsável pelos arredores do pequeno porto em Havana. Alvo constante de peças pregadas pelos pescadores, ele chega ao ponto de surgir bêbado em casa. Enquanto isso, Nelsa pena para subir uma escada — e cai. O destino de Nelsa fica incerto, obrigando Vladimir a rever suas atitudes (talvez inconscientemente) a despeito de todas as suas limitações.

    Assim, é tão importante para Aleksandra Maciuszek retratar a relação de mãe e filho tanto quando eles estão juntos, como quando afastados. Rodado com uma abordagem naturalista, o filme acentua a precariedade daquele lar, expõe o amor materno de maneira intimista e parte para um final que seria tocante numa ficção. Em se tratando de um docudrama, o horror involuntário da miséria em que vivem Nelsa e Vladimir simplesmente esmaga o coração.

    O horror da ditadura

    "Primeiramente, Fora Temer. Em segundo, Cunha na cadeia". A frase já é uma marca da diretora Beth Formaggini, e reflete o senso de justiça que a move também em sua carreira como cineasta. Como revela Uma Família Ilustre. O filme é, basicamente, uma conversa em que o bispo evangélico Claudio Guerra conta como assassinou e ocultou os corpos de militantes comunistas durante a ditadura militar.

    Além do horror provocado pela naturalidade com que o ex-delegado de Polícia Civil admite seus crimes, as melhores qualidades do filme estão resumidos em sua sinopse: o entrevistado oscila entre o arrependimento pelos atos do passado e o orgulho de ter sido um cumpridor de ordens competente. O prazer que demonstra ao dizer que é temido até hoje também mergulha em sombras sua suposta redenção.

    No entanto, o curta documentário tem sérios problemas estruturais. A condução das conversas pelo psicólogo Eduardo Passos soa intervicionista demais, induzindo Claudio Guerra em certas perguntas. O formato convencional do filme revela reais problemas de montagem na fluidez dos fatos. Por fim, Uma Família Ilustre termina abruptamente, numa falta de cuidado narrativo que não se vê nem em programas investigativos televisivos.

    O horror cotidiano

    "Filho" das manifestações de junho de 2013, Samuel Lobo se inspirou numa matéria de jornal para a realização de Noite Escura de São Nunca. Inês Etienne Romeu, militante presa, torturada e violentada durante a ditadura militar e única sobrevivente da Casa da Morte, em Petrópolis, sofrera um atentado em casa, décadas depois, já idosa. O horror no papel permeou o imaginário do jovem cineasta, concretizando o filme em sua cabeça no projeto de conclusão de curso da Escola de Comunicação da UFRJ.

    Assim, Samuel Lobo parte de um fato bem concreto e do inconformismo decorrente para construir uma narrativa essencialmente fantástica em Noite Escura de São Nunca. O diabo e o gato preto simbolizam esse terror permanente e diálogos duros, mecânicos, objetivam o tom de denúncia aos abusos do Estado, numa reunião de boas ideias realizadas com boas intenções, ambição artística, mas inequívoca precariedade.

    Hoje no Cine Ceará 2016

    O Cine Teatro São Luiz receberá quatro curtas-metragens no sexto e último dia de competição do 26º Cine Ceará. São eles: Carruagem Rajante, de Jorge Polo e Lívia de Paiva; A Festa e os Cães, de

    Leonardo Mouramateus; Da Janela Pra Consolação, de Dellani Lima; e Solon, de Clarissa Campolina. A mostra ibero-americana de longas-metragens termina com o filme uruguaio Clever, muito esperado por ser a única comédia em competição no festival.

     

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