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    Cine Ceará 2016: O talento de Julio Andrade conduz o Maresia de Marcos Guttmann

    Terceiro dia do festival é marcado por homenagem a Dira Paes e o cinema ingênuo de Salsipuedes, a Cinderela Baiana do Panamá.

    O terceiro dia do Cine Ceará 2016 teve início com um grande atraso. Previamente marcada para o domingo, a homenagem à atriz Dira Paes foi adiantada para o sábado (18), gerando o conflito que retardou em uma hora e meia o início da cerimônia e da exibição dos filmes.

    Uma vez no palco, Dira Paes se emocionou. Agradeceu ao cineasta Rosemberg Cariry e ao ator Chico Díaz (homenageado na abertura), endossando a homenagem indireta do 26º Cine Ceará aos 20 anos de Corisco e Dadá. Orgulhosa, comemorou o êxito de uma carreira de 32 anos, apesar de todos os riscos. Amorosa, dedicou a homenagem ao seu filho Inácio, de 8 anos. E foi sutilmente política, desejando um Brasil "transformado".

    Barco à deriva

    O terceiro concorrente à mostra competitiva de longas-metragens foi o brasileiro Maresia, do diretor e roteirista estreante no formato Marcos Guttmann. Presente à exibição, o cineasta salientou sua paixão pelo projeto, enfim realizado após dez longos anos. O resultado, porém, não condiz com toda sua afeição. Nem com a qualidade da obra que o filme adapta: Barco a Seco, de Rubens Figueiredo.

    Em Maresia, duas linhas temporais distintas correm paralelamente. Na principal, contemporânea, seguimos o perito em arte Gaspar Dias, especializado num pintor morto misteriosa e precocemente, Emilio Vega. A segunda é situada na década de 1930, onde o próprio artista é retratado em sua personalidade irascível, seu vício em bebida e total desprendimento, da vida e de sua arte. E ambos são interpretados pelo mesmo ator; uma escolha duplamente bem-sucedida.

    Em primeiro lugar, pelo fato de o protagonista ser o talentoso Júlio Andrade, totalmente distinto em cada persona. Depois, porque a opção reflete a obsessão de Gaspar por Vega, tão grande que ele se vê como o ídolo. Essa ideia é ainda ilustrada por uma série de coincidências, da paixão pelo mar ao apreço por vinho. Quando enfim identifica um quadro pintado pelo artista, Gaspar burla as regras de uma galeria de arte e acende um cigarro — num clichê pós-coito que reflete sua fixação quase sexual pelo ídolo.

    Esse apuro estético está presente em todo o filme, cuja ótima fotografia evoca bem a veia calorosa do artista e a frieza do perito. Já a trama, derrapa. Algumas diferenças fundamentais distanciam — em qualidade — a adaptação do Prêmio Jabuti de Literatura. Em Barco a Seco, há todo um aprofundamento sobre o passado de Gaspar, órfão, criado por uma família pobre que não é sua, justificando o porquê de sua projeção no outro; sua fuga de si, seu "mergulho num espelho". Em Maresia, o personagem é pouco complexo, tornando sua severidade no ofício e obsessão pela alteridade pouco justificada. 

    Irregular na alternância entre o envolvente Vega e o desinteressante Gaspar, Maresia acaba apostando num mistério que não existe: o real paradeiro do pintor, que é óbvio e sem graça. Se o filme vai bem na reflexão sutil sobre o ofício do crítico e a vaidade envolvida, sua curta duração (bem-vinda em obras de ritmo tão lento) limita o desenvolvimento dos valiosos subtemas de Barco a Seco, como identidade, o valor da arte, autenticidade e outros. E impede Júlio Andrade de brilhar ainda mais, como teria a bordo de um barco mais potente.

    O pior filme do Panamá

    Salsipuedes é um filme horrível. Absolutamente tosco. Uma sequência é emblemática: Andrés lamenta a morte do avô e a fuga do pai presidiário, daí a cena corta para o personagem num outro cenário, à beira mar, erguendo lentamente a cabeça baixa. Em meio a desfoques, o canastrão Elmis Castillo tenta expressar tristeza, mas sensualiza. Sobe uma trilha sonora melosa, datada, e a sequência acaba. Sem mais nem menos. Como o trecho de um videoclipe brega.

    Como tantos outros cineastas em início de carreira, Ricardo Aguilar e Manolito Rodriguez parecem basear seu cinema nos filmes que viram durante a vida. O problema é que suas influências são de baixíssima qualidade e, certamente, de muitas décadas atrás, dada a antiguidade dos clichês. Lamentavelmente, o total amadorismo dos realizadores em todas as áreas do fazer cinematográfico não condizem com os recursos técnicos de que dispunham, dada a qualidade da imagem e o tamanho do elenco, por exemplo.

    Ingenuidade é a palavra que melhor define o pobre cinema de Salsipuedes. Em seus diálogos duros, desconectados da trama e atirados no espectador, a mensagem é clara: revelar a realidade do Panamá, mas também homenagear o país. Num ato patriótico, Andrés larga sua vida promissora nos Estados Unidos para voltar à terra natal — onde é assaltado e espancado. Em apenas alguns dias, o rapaz educado e de boa índole acaba matando por causa do pai e sendo preso por causa da mãe. Do nada! Bastou pisar no Panamá.

    A capacidade do longa panamenho de gerar humor involuntário é tamanha que o protagonista Andrés é tratado como Príncipe de Salsipuedes — gerando uma coincidência absurda com o clássico trash brasileiro Cinderela Baiana. Mas, verdade seja dita: ao terminar com Carla Perez salvando as criancinhas da exploração infantil e dançando "Segure o Tchan", a obra-prima de Conrado Sanchez tem um desfecho mais coerente que o discurso (e o todo) de Salsipuedes, o pior filme do Panamá.

    Hoje no Cine Ceará 2016

    Este domingo (19) contará com a exibição de um dos longas-metragens mais esperados do festival: o inédito Menino 23: Infâncias Perdidas no Brasil, um documentário de Belisario Franca. Na abertura, os curtas-metragens Fotograma, de Luís Henrique Leal e Caio Zatti, e Índios no Poder, de Rodrigo Arajeju. De fundo, a exibição especial do longa O Outro Lado do Atlântico, de Daniele Ellery e Márcio Câmara.

     

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