Minha conta
    Exclusivo: Entrevista com Gaël Mocaër, diretor do premiado documentário O Dia do Mineiro

    O cineasta falou sobre as dificuldades de filmar na Ucrânia sem autorização, e sobre a curiosa relação que manteve com os mineiros de carvão durante os dois anos de filmagem. O Dia do Mineiro recebeu o prêmio de melhor filme no festival Cinerama.BC 2014, em Santa Catarina.

    por Bruno Carmelo

    De passagem no Brasil durante o festival Cinerama.BC, o diretor francês Gaël Mocaër conversou em exclusividade com o AdoroCinema sobre O Dia do Mineiro, grande vencedor do festival catarinense em 2014. O cineasta falou mais sobre este filme que retrata o dia a dia de trabalhadores ucranianos em uma mina de carvão. Ao invés de um retrato sério e pedagógico, este belo documentário é repleto de humor, tanto do cineasta quanto dos próprios personagens.

    Ao mostrar a imagem que os ucranianos possuem sobre o cinema e sobre o mundo ocidental, o filme torna-se uma excelente reflexão sobre o ato de filmar, e sobre a relação entre o cinema e a representação do mundo. Você pode conferir a nossa crítica sobre O Dia do Mineiro. Leia abaixo a conversa com Mocaër:

    Você afirmou durante o festival que foram as fotos dos mineiros da Ucrânia que te deram a vontade de fazer um filme. Por que achou que aquele contexto também funcionaria no cinema?

    Quando eu vi essas imagens pela primeira vez, pensei que faltava alguma coisa. Aquilo estava fixado no passado, mas ainda era o presente. Faltava o movimento, a expressão dos corpos. Por isso, eu entrei em contato com este fotógrafo, e eu sabia que daria certo, porque a minha maneira de trabalhar no documentário não é clássica: eu não escrevo o filme antes de gravar, já sabendo a história que vou contar. Normalmente, eu vou ao local e filmo. Dependendo do que ocorre no lugar, eu conto uma história.

    Neste caso, eu filmei bastante. Visitei o lugar quatro vezes em dois anos. Depois da primeira filmagem, eu tinha 20 horas de imagens, mas eu não sabia o que ia contar. Eu apenas filmei homens trabalhando, ainda não havia cumplicidade entre nós, eles não me conheciam, e se desconfiavam. Depois, com o tempo, nós simpatizamos, eu comecei a mostrar as imagens, nós rimos juntos, o ambiente se descontraiu. Eles passaram a esquecer a câmera, e é exatamente no momento em que esquecem a câmera que eu começo a trabalhar. Esse trabalho demorou cerca de seis meses, e depois comecei a filmar as histórias humanas, de trabalho... O filme nasceu disso.

    Mesmo assim, você conservou várias cenas em que os mineiros estão conscientes da câmera, rindo de você, em tom de desprezo. Por que guardou tantas imagens deste tipo no corte final?

    Por várias razões. A primeira é que eles não estão apenas conscientes da câmera, mas também da relação comigo. Eu não estou longe, e sim ao lado deles, e nestes momentos eles riam da minha cara, porque eu não era mineiro, e só sabia filmar o tempo inteiro. Para eles, isso não é uma profissão. Para um mineiro, um filme é algo para as férias, é impossível que seja uma profissão. Eu guardei esses momentos porque eles instauram uma distância ao espectador: os mineiros adotam um recuo em relação às suas próprias vidas, e isso me permite registrar a cumplicidade entre eles. Estou fora do quadro, mas ao mesmo tempo eu estou sempre lá, ao lado deles. É uma maneira paradoxal de trabalhar.

    Você tinha tradutores da língua ucraniana no lugar? Você chegava a conversar com eles?

    Não, não tinha conversa nenhuma. Justamente, eu achei que não falar ucraniano era uma vantagem, uma boa oportunidade. Eu tenho alguns amigos cineastas que não filmam se não são capazes de entender tudo que está acontecendo, mas eu consegui brincar com a ideia ingênua de alguém que não compreende nada, e assim eles conseguiram se soltar, dizer tudo que pensavam um ao outro. Mas eu tinha uma tradutora. Todas as manhãs, eu filmava, e à noite, ela me dizia o que acontecia nas imagens. Ela me traduzia durante a montagem. Eu descobria tudo que tinha acontecido, palavra por palavra, quando chegava a noite. Os mineiros achavam que eu não estava traduzindo, que eu faria isso mais tarde, na França, aos pés da Torre Eiffel – eles possuem uma imagem um pouco errada de Paris -, por isso continuavam a brincar e conversar livremente. Eles não teriam dito tudo o que disseram se soubessem que eu estava entendendo. Para mim, foi uma boa oportunidade.

    Você nunca pensou em levar a tradutora ao local das filmagens?

    Não, porque isso cortaria o momento, cortaria a vida e a emoção. Quando eu estou com as pessoas e filmo, eu não converso com elas. Mesmo se me perguntam algo, eu permaneço calado, e depois vejo o que vou fazer durante a montagem. Eu não falo, porque a intenção é que eu e a câmera estejamos completamente ausentes. Normalmente, isso é fruto de um longo trabalho. Se eu pedisse à tradutora para traduzir a cada palavra deles, eu seria obrigado a cortar o plano, e isso cortaria a conversa, não daria certo.

    Como você encontrou o tom do filme? É surpreendente como O Dia do Mineiro é um filme leve, apesar de tratar de um tema sério.

    Isso se impôs de maneira natural, porque eles funcionam assim. Eu já sabia que não faria algo melodramático, porque o tema é si é duro, e já existe uma porção de filmes sobre o trabalho nas minas de carvão, dizendo que é difícil, que as pessoas morrem, etc. Eu não queria fazer isso, não teria mais interesse, e não traria nada de novo. A cerimônia no começo e no fim, o feriado do Dia do Mineiro, é uma espécie de baile do vilarejo para dar medalhas às pessoas que trabalharam bem. Mesmo a orquestra é composta por dois mineiros. É uma cerimônia um pouco surrealista, e isso ditou o tom do filme. Afinal, eles são divertidos, eles riem, dançam, e eu queria levar isso ao filme.

    Além disso, o humor faz parte do método russo: no começo, é muito difícil, porque as pessoas não correspondem. Eu dizia bom dia, e não tinha respostas. Mas quando comecei a agir como eles, a ser um pouco mais rude, eles começaram a rir. Eu passei a imitá-los. Eles acharam engraçado, e depois eu mostrei a imagem a eles, para provar que eles de fato se comportavam desta maneira diante da câmera. Depois, surgiu uma cumplicidade, eles passaram a me contar as coisas. Mas eles possuem um humor muito particular, muito afiado.

    Como você conseguiu filmar no local? Como obteve autorizações?

    Filmar nas minas de carvão da Ucrânia é algo muito complicado. É preciso pedir uma autorização ao governo, ao ministério e outros departamentos. Eu comecei a pesquisar as locações em 2009, e pedi as autorizações, mas poderia ter esperado entre oito e dez anos para consegui-las. O processo é muito longo e difícil. Eu decidi não passar por isso, por isso eu fiz sem autorização, usando o método ucraniano e russo: eu subornava as pessoas. Eu dei dinheiro ao diretor da mina, ofereci vodca. Eu visitei seis minas, e escolhi esta porque era pequena, e eu poderia rever as mesmas pessoas o tempo todo. No começo, eu não tinha autorização do diretor para mostrar tudo. Aos poucos, eles me deixaram filmar outras coisas, e passaram a me levar a outros lugares. Uma mina de carvão na Ucrânia é como uma usina nuclear na França: é um local estratégico. Filmar em uma usina nuclear hoje em dia seria impensável. Eu pedi a autorização para filmar nas minas, mas teria pouca chance de conseguir.

    Eles também não queriam que eu mostrasse as más condições, as dificuldades do trabalho. Mas eu dei um jeito. Conheço uma pessoa lá que me ajudou. Mesmo assim, eu tive alguns problemas: fui vigiado durante bastante tempo, uma pessoa ficou responsável de me proibir de filmar, mas só na quarta e última vez que fui à mina, me deixaram explorar todo o lugar. Antes, eu fiquei em uma espécie de prisão domiciliar imposta pelo equivalente do KGB na Ucrânia.

    Ao longo de dois anos, eu passei por várias fases: o olhar dos mineiros se transformou, e a administração da mina também mudou. No começo, eu era visto como o francês eu fazia um vídeo de férias. Na segunda vez, havia um novo diretor, que pensava que eu poderia talvez comprar a mina, apresentá-la a investidores ocidentais. Ele pensava que eu estava a serviço de empresas em busca de negócios. Na terceira vez, pensaram que eu era um espião. Fui detido e interrogado, e mesmo assim eu continuei a trabalhar. Na quarta e última vez, eu ainda não tinha a autorização oficial, mas filmei de noite, atravessando uma floresta para chegar ao local. Eu tinha autorizações orais, por assim dizer, do diretor da mina e de um representante do governo local. Mas ninguém me daria um papel para me permitir filmar. Quem me fornecesse esse documento correria o risco de ir à cadeia e perder o emprego.

    Existem dois tipos de imagem muito distintos no filme. Quando você está dentro da mina, a câmera é livre, e você parece surpreso de estar no lugar. Fora da mina, as imagens são extremamente compostas, fixas, existe um controle total da luz e dos enquadramentos.

    Sim, fui obrigado a filmar desta maneira, porque são dois mundos diferentes. Embaixo, eu não tinha muita escolha: o lugar é estreito e eu tinha que usar muito a câmera no ombro, mesmo se eu colocava o tripé sempre que podia. Mas eu queria realmente mostrar esses dois mundos, e de fato, eu gosto muito de compor as minhas imagens. Gosto de belas imagens, encontrar um enquadramento interessante. Eu sou paciente: posso instalar a câmera no local e esperar uma hora e meia para obter um único plano. Mas vale a pena. Este é um universo muito interessante de trabalhar no cinema. Esteticamente, existem diversas grades, existe a clausura nas minas, e também uma clausura psicológica, por causa da hierarquia do trabalho, em estilo comunista. Eles não têm muita escapatória: eles possuem um humor e uma camaradagem, mas é evidente a pressão que enfrentam. Eu queria mostrar a beleza das pessoas e dos lugares. Afinal, é isso que desaparece, é muito visual.

    Esta maneira de filmar realça o aspecto de documento, de registro histórico a ser lembrado no futuro.

    Certamente, existe um trabalho de memória. O filme não foi feito com esse objetivo, mas se a mina de fato desaparecer, isso servirá de documento - mas sem ser didático. Essa é a verdadeira diferença no cinema documentário: nas reportagens da televisão, exista narração, tudo é explicado o tempo inteiro, o espectador é conduzido pela mão, porque acham que o público é burro. Mas para mim, o documentário independente deve permitir o silêncio, e nem sempre precisa explicar as coisas, basta deixar que as pessoas entendam. Elas são inteligentes o suficiente para compreender, sem que eu precise dizer tudo que acontece. O documentário hoje em dia é muito pobre: o som repete a imagem, a imagem repete o som. Eu queria algo mais rico do que essa convenção que surgiu há alguns anos, e que não tem a mínima relevância. É como rádio filmado.

    Como as pessoas reagiram ao filme, quando foi mostrado na Ucrânia e na França?

    As reações variam bastante. Apresentei O Dia do Mineiro no IDFA (Festival Internacional de Cinema Documentário de Amsterdã), então os primeiros espectadores foram os holandeses. As pessoas riram muito. As salas estavam cheias. Na verdade, o filme foi bem recebido em todos os lugares, mas a diferença se encontra nas partes do filme: na França, riram em algumas partes, na Holanda, riram em outras partes. Na Ucrânia, eu fiquei surpreso de ver que em diversos momentos, eles não riram nem um pouco. Não é o mesmo humor. O único momento em que todos riem juntos é a cena no final, quando o diretor diz “Eu espero que o salário de vocês chegará a tempo”, porque todos podem se identificar com isso. Mas o filme sempre foi bem recebido.

    O Dia do Mineiro

    facebook Tweet
    Comentários
    Back to Top