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    Pastoral Americana
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Pastoral Americana

    A família americana em ruínas

    por Bruno Carmelo

    “Um norte-americano pode ser considerado terrorista?”. Esta pergunta, lançada recentemente no Senado dos Estados Unidos, gerou um visível desconforto no governo. Por que os tiroteios em escolas, as ações violentas de seitas e os crimes de ódio motivados por grupos organizados não podem ser considerados atos de terrorismo assim como os ataques com bombas orquestrados por estrangeiros? De que maneiras estes atos odiosos se tornam menos condenáveis ao serem cometidos por pessoas locais? A etnia, nacionalidade ou religião é determinante para a caracterização do ato de terror? Este debate tão importante quanto delicado aparece no centro de Pastoral Americana, adaptação do livro de Philip Roth no qual a “família perfeita” da América profunda se vê confrontada com um ato extremista dentro do próprio lar.

    O núcleo central corresponde ao arquétipo quase caricatural do American Way of Life: o pai e provedor é Syemour Levov (Ewan McGregor), conhecido como “Sueco”, um homem loiro e belo, antigo herói da escola por suas conquistas no esporte. Ele se casou com Dawn (Jennifer Connelly), ex-miss New Jersey e dona de casa exemplar. Ambos são amigáveis, cristãos e um tanto ignorantes em relação aos conflitos mundo afora, como convém à cidadezinha agrícola. Até o momento em que descobrem que a filha adolescente, a rebelde Merry (Dakota Fanning), plantou uma bomba num correio, levando à morte do proprietário. Para os habitantes locais, a depredação do patrimônio é tão absurda quanto a morte do pai de família. “Mas a nossa filha jamais faria isso!”, repetem Seymour e Dawn, confusos, tentando convencer a si mesmos. O terrorismo poderia nascer da família patriarcal e cristã?

    Na direção do longa-metragem, Ewan McGregor preserva trechos literários na narração, especialmente no prólogo e no epílogo, quando se explica de que maneira a família é progressivamente arruinada pelos atos de Merry. Percebe-se o refinamento da escrita de Roth, e também a sua capacidade a colocar os dedos nas feridas: não basta que a filha loira e gentil seja seduzida pelo extremismo, mas o discurso psicológico também faz com que a perfeição dos pais esteja diretamente relacionada à deriva da filha: a jovem gaguejava para não precisar competir com a beleza da mãe, se rebelava porque jamais estaria à altura do modelo opressor e inalcançável de pai e mãe. Em outras palavras, a jovem não adotou este caminho apesar da boa criação dos pais, e sim por causa dela. O modelo patriarcal acarretaria consequências catastróficas à sociedade – vide a provocação da militante Rita ao pai de família, desafiando-o a trair a esposa, além da paixão literal da filha pequena pelo pai.

    Diante de um material fino e provocador, McGregor segue um caminho pouco estimulante esteticamente. A abordagem do conteúdo se revela um tanto literal: a virtude dos pais é retratada pelo por do sol e o gramado impecável, a sujeira da filha será representada pelo local insalubre onde vive, o envelhecimento dos personagens é obtido através de uma maquiagem exagerada, e o surto da mãe com a faixa de miss se torna explícito demais. Se o diretor visava criticar tanto a atitude da filha quanto a alienação dos pais, seria preciso observar este modo de vida com algum distanciamento, seja pela ironia, seja pela composição grotesca, tragicômica etc. No entanto, o tom é seríssimo, embarcando nos prazeres do suspense policial ao invés do cerne dramático que domina o material. Em especial, na hora de explicar a complexa transformação de Merry, a narrativa deixa-a no plano de fundo, preferindo se ater à dor do pai cuja honra foi manchada.

    Isso leva à grave indefinição em torno do protagonista, o Sueco. O ator-diretor hesita entre torná-lo um pai ignorante ou um herói que nunca desiste da filha. Algumas atitudes relacionadas à esposa e a Rita ressaltam sua pureza, o que faz a narrativa pender para o lado deste pai protetor, judeu e empresário, ao invés de observar a família de fora, sem julgamentos, como sugere a inserção do personagem Nathan Zuckermann (David Strathairn). Por mais louvável que seja o mea culpa americano em relação à Guerra do Vietnã, o desfecho ainda presta certa homenagem a esta América conservadora, que combate ameaças internas e externas com a mesma resiliência. Partindo de uma discussão crítica em relação aos Estados Unidos, McGregor atinge uma conciliação forçada (vide a imagem final) baseada no afeto e na inevitabilidade dos laços de sangue.

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