Após cem anos, clássico mudo continua um deleite para os olhos e afronta para o cérebro
Em 3 de março de 1915, em plena Primeira Guerra Mundial, acontecia em Nova York a première do (talvez) mais popular e controverso filme mudo de todos os tempos. O Nascimento de uma Nação é a obra mais conhecida do diretor David Wark Griffith (1875-1948), um dos pais de Hollywood.
A razão de O Nascimento de uma Nação ser um filme indigesto é que ele é explicitamente racista. E não é só isso. O filme é do começo ao fim uma espécie de panfleto da Ku Klux Klan, a famigerada seita segregacionista. Embora haja relatos que Griffith estava mais encantado com as possibilidades cinematográficas que com o conteúdo duvidoso da obra, é realmente difícil defendê-lo.
No ponto de vista absurdo de sua obra, os negros jamais poderiam viver em pé de igualdade com os brancos. O filme começa com uma frase que estabelece o tom da história: The bringing of the African to America planted the first seed of desunion (A vinda dos africanos para a América plantou a primeira semente de desunião). Para provar essa lógica, os negros no filme são reduzidos aos mais ultrajantes estereótipos, como preguiçosos, corruptos, sexualmente agressivos, violentos, manipuladores... até mesmo nas cenas em que se pretende fazer algum humor, o discurso racista é mantido. O que piora de figura com o uso da black face, que é o uso de tinta escura no rosto de atores brancos.
A cumplicidade de Griffith nisso tudo se mostra até no corpo de atores. Há de fato atores afro-americanos no elenco, mas eles nunca interagem com os brancos, nem sequer fazem alguma atuação. Só os atores brancos, utilizando o recurso da black face, é que fazem os papeis dos personagens negros que interagem com os da “raça ariana”.
Fora que, os negros no filme não são personagens. São rasos, unidimensionais, caricatos, sem personalidade, sem subjetividade, apenas uma ideia no filme a ser martelada do começo ao fim. Não há um personagem negro que seja interessante ou que sirva de contraponto – para o filme, talvez quem mereça simpatia na história toda seja a negra gorda, que ajuda a libertar o seu senhor, o velho Cameron das garras dos negros fardados do exército rival. Quer dizer, só merece “simpatia” a negra que é obediente e dócil aos seus senhores, que não aceitou a abolição. Desprezível.
O maniqueísmo – “assimétrico” diga-se de passagem – se constrói com um didatismo irritante. Dixon escreveu seu livro e sua peça para fazer catecismo, coisa que Griffith não conseguiu se livrar. Há uma cena, por exemplo, em que, enquanto o “mulato” Silas Lynch maltrata um cão de um modo meramente gratuito, do outro lado o casal de namorados Ben e Elsie está beijando e acariciando uma pomba.
Ora, se no plano técnico isso mostra o uso da “ação paralela”, para obter efeitos de comparação, recurso inovador até então, no plano narrativo bate na tecla bisonha que questões de índole também são questões de raça.
O filme defende a existência da KKK, como a força “justa” e capaz de afastar do Sul a “anarquia negra”, conforme é dito em um de seus intertítulos. No subtexto, parece sugerir que a abolição da escravatura foi um erro crasso, que a Reconstrução foi um desastre, e que os negros aproveitaram a liberdade para agirem com revanchismo. E não para por aí. De modo manipulativo, o filme transforma Ben Cameron, o líder da seita, numa espécie de mocinho com ares nobres. De um modo quase obsceno, Griffith abusa das panorâmicas, mantém pulso firme no ritmo, no aproveitamento do espaço e do corpo de atores e figurantes, levando a ação do longa ao ápice... justo na cena em que cavaleiros brancos da KKK massacram os soldados negros que cercaram a paupérrima choupana... Ele quer que você torça pela KKK.
Se no aspecto ideológico é um filme odioso, no aspecto técnico, conforme nós já sinalizamos, o filme incorporou vários elementos que se tornaram o bê-á-bá da linguagem cinematográfica. Closes dramáticos, traveling (deslocamento de câmera), ação paralela, alternância de sequências, flashbacks, fades (gradativa aparição ou escurecimento da imagem), trilha sonora própria, bem como o uso de cores nas tonalidades, carregando no vermelho em cenas com fogos e explosões, no amarelo quando externas, azul quando mostra rios e mares... Há em Griffith uma percepção para o espetáculo, pontuando o filme com romance, comédia, drama, tensão e cenas de ação que se tornaram hoje elementos quase que obrigatórios para se fazer um “grande filme”.