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    Cães do Espaço
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Cães do Espaço

    Desumanizando os cachorros

    por Sarah Lyra

    É curioso observar como a expressão “tratado como animal”, usada tão popularmente, naturaliza a ideia de que animais podem e devem, de alguma forma, receber tratamento inferior em comparação aos humanos. Em Cães do Espaço, essa “lógica” é desconstruída. O filme acompanha a rotina de cães de rua em Moscou, na Rússia, e os coloca na posição de conduzir a narrativa, como um empoderamento da ótica canina sobre o mundo. Inevitavelmente, ao optar por essa abordagem, os diretores Levin PeterElsa Kremser acabam implicitamente falando também sobre a arrogância no comportamento humano e a ideia de que as outras espécies estão a serviço da humanidade.

    Um dos pontos interessante deste documentário é sua disposição em evitar o lugar comum no que diz respeito às características do gênero, principalmente no uso da linguagem cinematográfica. Para acompanhar a perspectiva de seus protagonistas caninos, a câmera sempre se posiciona na altura de seus olhos, evitando, portanto, transmitir a sensação de inferioridade normalmente associada ao plongée (quando a câmera está acima do nível dos olhos do objeto). Com isso estabelecido, os diretores ganham um novo mundo de visão para explorar, pautado principalmente nas ricas expressões faciais e corporais dos animais, além dos acontecimentos cotidianos de um animal de rua. O repertório de ações protagonizado pela dupla de cachorros é extenso e apresenta uma impressionante capacidade de comunicação. Para Peter e Kremser, não existe a ideia do cachorro de rua como vítima, muito pelo contrário, os realizadores aplaudem a liberdade destes seres de ir e vir, de explorar ambientes sem qualquer tipo de restrição e de poder correr livremente sem precisar atender às demandas de um dono.

    Intercaladas à vivência nas ruas estão as imagens de arquivo do programa espacial soviético, responsável por enviar em 1957 o primeiro ser vivo ao espaço, Laika, uma cachorra de rua. Os trechos selecionados mostram tanto o longo e invasivo processo de exames aos quais os animais são submetidos, com todo tipo de monitoramento e coleta de amostras possível, como a experiência deles no confinamento de uma cápsula espacial — novamente, um interessante contraponto à ilusão de que nós enquanto humanos tornamos as vidas das demais espécies mais rica e completa. Somado a isso, é inevitável não refletir sobre os valores tão comumente propagados de que testes em animais são um mal necessário para o chamado progresso científico, ainda que este não seja o foco do documentário. Os momentos que mostram os cachorros tremendo e assustados com o trâmite das pesquisas são absolutamente pavorosos.

    Diante disso, a cena em que um dos cachorros mata um gato, brilhantemente captada pela equipe de câmera e apresentada pela montagem quase sem cortes, parece mais natural e instintiva do que chocante ou cruel. Essa abordagem dá ao espectador a chance e o tempo de processar e ressignificar as fortes imagens apresentadas em tela. A fotografia noturna, apoiada unicamente na iluminação ambiente, também se torna uma aliada, e os diretores surpreendem ao apresentar um resultado final sofisticado e com alto nível técnico.

    Cães do Espaço é uma obra simples e ao mesmo tempo extremamente complexa pelas camadas que se dispõe a explorar, ainda que não se saiba o que exatamente pode ser encontrado em cada uma delas. Ao trazer nosso ângulo de visão poucos centímetros mais abaixo do que estamos habituados, Peter e Kremser abrem também um novo mundo, onde não apenas a estética e a linguagem, mas principalmente as ideias, passam a ser revisadas.

    Filme visto na 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2019.

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