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    Corações e Ossos
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Corações e Ossos

    Os personagens da guerra além dos estereótipos

    por Sarah Lyra

    O retrato do fotógrafo de guerra como figura assombrada pelos horrores presenciados nas zonas de conflito armado, associado a um problema com drogas ou álcool e um temperamento explosivo já foi abordado inúmeras vezes no Cinema. Muitas produções caem na tentação de romantizar a angústia interna das pessoas que se deparam tão frequentemente com a morte, sejam elas membros da população local, fotojornalistas ou até mesmo assassinos. Em Corações e Ossos, os clichês tendem a ser evitados, e o resultado final é uma obra profunda em suas problematizações, que respeita e trabalha as contradições dos contextos em que seus personagens se encontram e não recorre a respostas simplistas para as complexas perguntas lançadas.

    O fotojornalista de guerra Daniel Fisher (Hugo Weaving) e o refugiado Sebastian Ahmed (Andrew Luri) protagonizam um embate que permeia toda a trama: afinal, qual o papel social de documentar e expor o horror? Que responsabilidades essa prática implica? E que discursos passam a ser elaborados a partir do momento que a imagem sai da câmera do fotógrafo para ser vista e analisada pelo público? Em um primeiro momento antagonistas na forma de pensar o papel da fotografia, Fisher e Ahmed acabam desenvolvendo uma forte amizade por conta daquilo que têm em comum, o fato de ambos terem vivenciado a guerra. Com isso, as ideias, anteriormente tão opostas, começam a se aproximar de um consenso. Ahmed passa a compreender o trabalho do fotógrafo, enquanto Fisher se sensibiliza pela preferência do amigo em não ver as fotos de seu vilarejo expostas para pessoas que certamente não entenderão o que ali se passou.

    Além do relacionamento dos dois homens, chama a atenção o cuidado com as esposas no roteiro de Ben Lawrence, que também está à frente da direção. Elas não são colocadas exclusivamente para alavancar os dramas masculinos, muito pelo contrário, Lawrence entende a necessidade de criar arcos próprios para as personagens, o que agrega imensamente à trama e as relações nela estabelecidas. Josie (Hayley McElhinney) e Anishka (Bolude Watson) estão conectadas não apenas pelo fato de serem casadas com homens assombrados pela guerra, mas também por estarem grávidas e precisarem lidar com todas as questões emocionais despertadas na relação entre seus maridos. Por isso, o confronto entre as duas mulheres, em que uma grande revelação é feita e Anishka questiona o lugar de fala de Josie, se torna uma das maiores cenas do longa.

    Mais do que surpreender ou criar reviravoltas, Corações e Ossos se interessa por humanizar as figuras retratadas, tornando-as dignas de erros, contradições e redenções. Lawrence não aponta dedos ou coloca seu falho protagonista na posição de herói, e tampouco transforma Ahmed em vítima ou vilão, como muitos filmes hollywoodianos tendem a fazer. Aqui, o filme vai além de rótulos pré-estabelecidos, e se dispõe a mostrar o que há por trás dos heróis, vilões e vítimas. Ao que parece, as possibilidades de categorização dos personagens da guerra são numerosas não porque há enorme diferenciação entre aqueles que povoam o conflito, mas porque dentro de si eles abrigam todas as opções.

    Filme visto durante a 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro de 2019.

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