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    Uruguai na Vanguarda
    Críticas AdoroCinema
    2,0
    Fraco
    Uruguai na Vanguarda

    A questão do "filme importante"

    por Bruno Carmelo

    “O filme tem problemas, mas aborda um tema importantíssimo”. Ou ainda: “um debate indispensável”, “uma discussão necessária”. A crítica de cinema tem multiplicado os discursos de autoridade, de natureza retórica, sobretudo na época em que a produção nacional de filmes se intensifica – o que implica no aumento do número tanto de obras boas quanto de obras ruins. Os documentários constituem os alvos principais da clemência crítica em função do tema: talvez a construção imagética seja bastante frágil, mas já que se tocou numa temática que considero importante, então o filme é bom. A relevância atribuída ao tema compensa os problemas estéticos e narrativos (o verbo “compensar”, de fato, é comum nestes casos), fazendo com que as fragilidades sejam “perdoadas” ou minimizadas em nome da relevância da discussão proposta.

    Ora, este raciocínio apresenta uma série de falhas graves. Primeiro, ele pressupõe que o crítico exerce uma influência direta no consumo cinematográfico e que, caso desprestigie os filmes “ruins porém importantes”, impactará negativamente na recepção que já enfrenta dificuldades por sua condição marginal. No entanto, é difícil precisar em que medida a crítica de fato impacta na carreira comercial de um filme, e se esse aspecto deveria ser levado em consideração na avaliação da obra. Segundo, ele pressupõe que a forma pode (deve?) ser avaliada separadamente do conteúdo, com prioridade ao último em detrimento da primeira. Isso significa que o crítico examinaria o que é debatido, e não como o tema é debatido. Terceiro, estabelece-se uma hierarquia de temas: discutir questões sociais seria mais importante do que retratar uma história de amor, por exemplo, de modo que o valor nasce antes mesmo da obra existir, pois a escolha do tema precede a produção e exibição.

    Consequentemente, abre-se o precedente de acreditar que o valor do filme existe fora deste e, ainda mais grave, antes mesmo de ele existir. A experiência do crítico diante da obra é diminuída: entra-se na sessão com certo a priori positivo ou negativo, e embora a imparcialidade seja tão impossível quanto indesejável, ela cede espaço a um julgamento de valores em que o cinema, enquanto linguagem, é posto de lado. Se a qualidade principal da obra se encontra na decisão prévia de abordar o tema X ou Y, então o produto final perde sua relevância, por servir unicamente como ponte entre o tema e seu público. Este raciocínio instrumentaliza a arte a ponto de transformá-la em panfleto, em mera ilustração de uma discussão. O cinema enquanto técnica, enquanto formato de expressão autônomo, produtor de catarses e reflexões, é preterido diante das intenções. Por fim, avalia-se mais a sociedade do que a arte visando representá-la.

    Essa reflexão contribui a pensar sobre Uruguai na Vanguarda, um documentário que poderia facilmente ser considerado “importante”. O diretor Marco Antonio Pereira visa expor as medidas adotadas no país latino-americano no que diz respeito à despenalização da maconha e do aborto, além do casamento igualitário e de medidas visando combater o racismo. Apesar do tom laudatório em alguns momentos, o documentário extrai depoimentos complexos de especialistas que relativizam o funcionamento das leis e explicam o longo caminho que falta percorrer: afinal, a lei que permite o aborto ainda visa claramente dificultá-lo, limitando a autonomia feminina; a lei permitindo a comercialização da maconha sofre com dificuldades de fiscalização etc. O filme pretende expor a necessidade de ultrapassar a decisão de “liberar/proibir”, estudando de que modo exatamente as permissões acontecerão, que impacto terão na vida dos cidadãos, e que brechas possuem o aprimoramento futuro dessas leis.

    O esforço, como se percebe, é notável. Podemos argumentar que estes projetos de avanço social são raros dentro da América Latina, e que o debate sobre as condições necessárias à sua aplicação se torna ainda mais pertinente diante da onda conservadora que assola os países sul-americanos. O comentário se justificaria pelo fato de que todo filme existe dentro de um contexto sociocultural, não podendo ser separado deste por completo. No entanto, ater-se a essa constatação – e retirar dela a maior parte ou integralidade do valor da obra – seria redutor, para não dizer contraproducente, com o cinema em si. Ora, de que maneira o diretor constrói esses debates? Que imagens ocupam os pouco mais de 70 minutos de filme? Que tipo de sensação, de estímulo, de reflexão ele provoca por sua escolha de enquadramentos, de luz, de ritmo? Como são construídos os depoimentos, de que maneira se trabalha o material de arquivo, de que modo a narração interage com o discurso? Como o som dialoga com as imagens?

    Neste aspecto, Uruguai na Vanguarda demonstra evidentes limitações. Alguns problemas são de ordem macro: o didatismo do discurso, que explica cada passagem histórica do Uruguai de modo descritivo e verbal; a impressão de que a imagem serve apenas a ilustrar o som e ocupar o tempo das falas; o formato rigidamente conservador para abordar uma transgressão; o debate extenso demais sobre o Candombe (possivelmente destinado a atingir a duração mínima para o longa-metragem); os enfeites da imagem para disfarçar a linearidade narrativa (excesso de música, recortes da imagem dentro da imagem, câmeras lentas). Outros problemas são muito mais pontuais, porém, uma vez reunidos, completam a aparência de amadorismo: os tópicos listados em letreiros sobre um fundo branco, como numa apresentação de Powerpoint, a baixa qualidade da imagem de arquivo, a imagem pouco contrastada, os reflexos da equipe nos quadros durante um depoimento, os problemas de captação durante a fala de Diego Sempol, o uso simplista de drones e cartões postais de Montevidéu.

    É difícil apontar alguma imagem particularmente bem construída, formalmente instigante, capaz de carregar um discurso sem a necessidade dos diálogos onipresentes – o curto plano de um mendigo dormindo pelas ruas diante de uma concessionária de carros de luxos seria o mais perto que a obra chega de uma provocação estética. De resto, a pertinente discussão se contenta com um formato minimamente funcional. Pode-se apontar que produção dispõe de poucos recursos, limitando as suas possibilidades, porém isso não justifica alguns cortes abruptos da montagem, nem a câmera tremendo enquanto encontra seu enquadramento durante uma entrevista. É evidente que o resultado não constitui a única opção possível dentro daquela realidade. Pelo contrário, ele foi escolhido enquanto tal, considerado eficiente ou suficiente para seu tema. Talvez o espectador termine a sessão munido de conhecimentos válidos a respeito dos projetos pioneiros da social-democracia latino-americana. No entanto, enquanto experiência de cinema, o documentário possui muito pouco a oferecer. Ironicamente, um elemento não existe sem o outro: a pregnância do discurso está diretamente associada às sensações evocadas por suas formas. Em outras palavras, um conteúdo ambicioso dentro de uma forma destituída de ambição se converte em pouco mais que uma tediosa palestra informativa.

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