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    Michelangelo - Infinito
    Críticas AdoroCinema
    1,0
    Muito ruim
    Michelangelo - Infinito

    O artista transformado em Deus

    por Bruno Carmelo

    O diretor Emanuele Imbucci é apaixonado pela obra do escultor e pintor Michelangelo e acredita que, enquanto cineasta, deveria divulgar ao mundo o talento impressionante do artista italiano. A intenção está longe de ser óbvia, no entanto: o diretor poderia evocar de diversas maneiras o talento do biografado, inserindo-o num contexto político, buscando a singularidade técnica de seu trabalho ou estudando o impacto de suas obras. O cinema possui múltiplas ferramentas parra dialogar com outras artes, assim como o documentário biográfico pode estabelecer discursos diferentes a respeito de seus objetos de estudo, variando em linguagem e grau de distanciamento. Imbucci busca o menor distanciamento possível, no caso, um olhar onisciente e onipresente, visando trazer ao espectador não apenas os feitos artísticos de Michelangelo, mas também seus pensamentos, proferidos pelo artista em pessoa (na interpretação de Enrico Lo Verso).

    O argumento segundo o qual, quanto mais apaixonado for o diretor por seu personagem, melhor será o filme, guia este documentário. A narrativa é construída pelo entrelaçamento de três instâncias explicativas: ora Michelangelo conta a sua própria história diretamente ao espectador, quebrando a quarta parede; ora o pintor e biógrafo Giorgio Vasari (Ivano Marescotti) descreve a trajetória do colega; ora flashbacks revelam o escultor, ainda criança, sendo agredido por pura inveja de suas capacidades. “Eu tinha a noção de não estar no mesmo nível dos outros”, explica o nada modesto Michelangelo. Do início ao fim, o personagem é explicado de maneira didática e linear, da infância à morte. Esta abordagem constitui um bom exemplo do que se convencionou chamar de “documentário Wikipédia”, acreditando que a função do cinema seria elencar as principais passagens da vida do artista, suas principais obras, uma a uma, mencionando datas e valor cultural.

    A principal tese do projeto, enunciada desde o título até a narração, diz respeito à superação simbólica da morte através da arte. Michelangelo estaria vivo até hoje devido à beleza de suas criações, que o filme não hesita em descrever como “divinas”. O filme acumula generosos elogios, tanto às obras “inspiradas em todas as outras obras, incluindo todas as estátuas gregas e latinas”, em referência a David, quanto ao “toque prodigioso que confirma uma obra imensa”, passando pelo “coração sulfuroso” do artista. Imbucci não teme o excesso kitsch, decorando suas imagens com trilha sonora grandiloquente, gelo seco para criar uma atmosfera de sonhos (ou de paraíso), câmeras lentas em torno de blocos de mármore e reflexos de estátuas em poças d’água. Talvez a referência estética mais próxima desta abordagem sejam os filmes bíblicos tradicionais, extraindo do maniqueísmo e da abundância de música e catarse (melo + drama) as qualidades de seu protagonista endeusado.

    Nesta exposição exacerbada da história de Michelangelo, Imbucci recorre a algumas ferramentas questionáveis e/ou bastante pobres em termos discursivos e cinematográficos. Primeiro, equivale fatos e suposições: os dados e datas de obras possuem a mesma afirmação de “verdade” do que as palavras colocadas na boca do pintor-personagem sobre sua vida triste e frustrada por não conseguir ser tão perfeito quanto Deus. Além disso, as interpretações das esculturas e pinturas são apresentadas como únicas leituras possíveis. “A representação do corpo masculino é uma prova de seu amor por Deus”, afirma o narrador, reduzindo uma série de circunstâncias técnicas e sociais a uma ciranda de amores (de Michelangelo por Deus, e do diretor por Michelangelo). O espectador pode ter a impressão de seguir uma visita guiada pelo museu imaginário dedicado ao artista, no qual um guia dedicado apresenta a leitura correta que cada visitante deveria ter sobre as obras, sem deixar que este tire as suas próprias conclusões, nem experimente suas sensações pessoais a partir da Pietá ou do teto da Capela Sistina.

    Ao final da sessão, diversos espectadores, muitos deles idosos, aplaudiam efusivamente. Parte considerável do público apreciou a palestra retórica, que tinha por objetivo dizer que o bom era bom, e que as obras consagradas mereciam ser consagradas. A obra recorre a diversos romantismos relacionados à figura do gênio, desde o talento inato, provindo de uma fonte divina, até o temperamento excêntrico e a incompreensão dos demais, por estar à frente de seu tempo. Ao sugerir que Michelangelo foi melhor do que qualquer outro artista, e uma pessoa melhor do que todos nós, reforça-se a pureza moral e espiritual típica dos discursos religiosos. No entanto, em virtude da idealização do artista, conhece-se muito pouco da pessoa por trás dos elogios, do homem por si mesmo. Michelangelo é reduzido a um objeto de adoração, assim como suas próprias obras. Em última instância, ambos se fundem, como de praxe na visão autoral de ordem genética: o artista é sua obra, e amar esta última implicaria venerar seu criador.

    Filme visto no 8 ½ Festa do Cinema Italiano, em agosto de 2019.

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